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Ney Latorraca entre vampiros, vaidades e verdades

Ator chega aos 80 anos de idade como uma das figuras mais emblemáticas do teatro, TV e cinema no Brasil

Publicado em 25/07/2024

Atualizado às 15:50 de 06/08/2024

por André Felipe de Medeiros

Em 1991, Ney Latorraca já ostentava uma carreira de enorme respeito no teatro, cinema e televisão. Ele já trabalhava há cinco anos com Marco Nanini e Marília Pêra (respectivamente seu parceiro de cena e diretora) em O mistério de Irma Vap, na estrada para se tornar a peça que ficou mais tempo em cartaz no Brasil - foram onze ao todo. Filmes como A ópera do malandro (1985), de Hector Babenco, já haviam consolidado sua reputação como um dos maiores atores de sua geração, enquanto programas como TV Pirata já haviam estabelecido sua popularidade com o grande público. Quando ele parecia já estar no auge, estreou como o vampiro Vlad na novela Vamp e o sucesso que já era enorme tornou-se absoluto por todo o país.

O personagem ficou marcado por seus muitos trejeitos. Eram caretas, gestos e até bordões, como “gotoso” - repetido à exaustão no dia a dia daquele início de década -, que fascinaram das crianças aos mais velhos que acompanhavam a trama de Antonio Calmon dirigida por Jorge Fernando. A mistura de suspense com comédia e dos temas de vampiros e rock ajudam a explicar o sucesso da novela. Observar o ator por trás de Vlad, contudo, dá ainda mais pistas para entendermos por que esse é um dos grandes marcos de sua carreira.

“Como espectador, a figura de Ney como ator e como persona se confundem”, comenta o também ator e cineasta Pedro Urizzi, “ele sempre me parece uma figura inadequada, seja em Vamp ou como Barbosa na TV Pirata. É curioso, porque eu acho que seu alívio cômico está nessa inadequação. E eu acho que isso me ajudou muito a compor o imaginário do ator que é também esses personagens. Isso produz um status mítico. Sua força de confundir os níveis através do ofício, através de encarnar e criar personagens tão notáveis como ele realizou, é minha primeira memória dele”.

Personalidade unânime

Nascido em Santos (SP) em 27 de julho de 1944, Ney Latorraca cresceu no meio artístico, filho de um crooner e uma corista que se apresentavam em cassinos. Grande Otelo, muito amigo de sua mãe, era seu padrinho. Sua infância foi marcada pelas dificuldades financeiras da família e os conflitos na relação dos pais - a mãe tinha uma visão positiva da vida e sempre encorajava o filho a apreciar as belezas do mundo, enquanto o pai era crítico, cético e desiludido, sem esperanças para o futuro de Ney, que se desenvolveu na soma e no contraste da personalidade de ambos.

Aos seis anos, participou de uma radionovela na Rádio Record, marcando o começo de sua trajetória no mundo do entretenimento. Sua primeira oportunidade profissional no teatro veio em 1964, na peça Reportagem de um tempo mau, de Plínio Marcos, embora a montagem tenha sido apresentada apenas uma vez, no célebre Teatro de Arena, devido à censura da época. Em 1969, faz sua estreia na televisão (Super Plá, da TV Tupi) e no cinema (Audácia, a fúria dos trópicos, de Carlos Reichenbach e Antônio Lima), com papéis pequenos nas duas ocasiões.

Sua juventude foi marcada também pelo imaginário hollywoodiano, do estrelato com o glamour do tapete vermelho, o que moveu sua ambição na carreira. “Sua personalidade é muito marcada pela vaidade”, conta Tania Carvalho, amiga e biógrafa do ator, “mas ser vaidoso não o impede de ser extremamente humano. Ele tinha uma brincadeira, que se perdeu agora com o Whatsapp, quando telefonávamos em seu aniversário, ele dizia: ‘Você é a pessoa número 62 a me ligar, depois da Vera Fisher’ (risos). Ele dizia que anotava a ordem de todos que telefonavam, e ai de você se não ligasse! Mas o vaidoso não olha para o outro, e esse não é o caso de Ney. Ele se interessa pelas pessoas, é muito amigo de seus amigos”.

A autora do livro Ney Latorraca - uma celebração (2004) comenta que o ator era tão atento aos outros que reparava com atenção a cada pessoa presente na plateia de suas peças: “Ele sabia quem estava dormindo, quem riu, quem não gostou… ele sabia tudo”. Tania reconhece também aquele mesmo humor tão presente nos improvisos de O mistério de Irma Vap como marca registrada de seu amigo: “Ney é uma das pessoas mais engraçadas do mundo. Se você chamá-lo para uma festa com só mais cinco pessoas, já será um escândalo. E ele botou muito de si na peça. Nanini era todo certinho e ele vinha e bagunçava com o improviso”. “Os fãs gostam muito de Ney porque enxergam a pessoa por trás de todo o humor”, conclui.

Letícia Sabatella, que estrelou o filme Dente por dente (1994) ao lado de Ney Latorraca, conta que o conheceu “quando eu era novata e ele já era Ney”. “Ele é mesmo um ícone”, continua a atriz, “tira da gente qualquer pudor com seu jeito de falar e de brincar. É um ator incrível, porque imprimiu essa personalidade dele que é adorada, é unânime, a todos os seus papéis. Um ator muito inteligente, que olha no seu olho e te vê”.

Ao relembrar a ocasião em que se conheceram, Letícia o descreve como “absolutamente gentil”. “Ele foi delicado e interessado, não à toa é tão querido. Você pode esperar de uma pessoa tão histriônica, tão Ney Latorraca, que ele pode ser tudo, mas ele ser atencioso e gentil talvez seja até um choque (risos)”.

Futuro imaginário

A popularidade de Vamp ganhou sobrevida em 2017 com uma montagem no teatro que reuniu Ney Latorraca e Claudia Ohana em seus papéis originais. Na ocasião, ele anunciou a aposentadoria, alegando que viver Vlad novamente seria um encerramento digno para sua carreira. No entanto, por amor, ambição ou vaidade, quebrou sua promessa duas vezes: Em Cine Holliúdy, série de 2019 produzida e exibida pela TV Globo, e em 2022 com a peça Seu Neyla, escrita em sua homenagem por Heloísa Pérrissé. Na montagem, com direção de José Possi Neto, o ator aparecia à distância, diretamente de sua casa no Rio, em um telão com 5m de altura por 2,5m de largura.

“Pessoalmente, acho que ele tinha que fazer um monólogo, um show só com ele no palco”, comenta Tania Carvalho sobre o que gostaria de ver o amigo realizar agora, após os 80 anos. “Ele fez de tudo, de coisas mais sérias a trabalhos experimentais”, conta a autora, “não há muito que ainda não tenha feito”. Ela entende, contudo, que a aposentadoria poderia ser novamente quebrada para ele estar no centro das atenções (ou do palco): “É como ele diz: ‘Rezo todos os dias quando saio de casa para ser discreto, mas dura meia hora’ (risos). Podem falar que isso o torna egocêntrico, mas é mentira: É uma das pessoas mais generosas que conheço”.

“Gostaria muito de poder trocar com ele em cena como ator”, conta Pedro Urizzi, que não teve a oportunidade de trabalhar com Ney, “mas, como diretor, seria incrível poder dialogar com sua ironia. Ele tem um comportamento muito fora do nosso tempo, parece um ator do século XIX. Se fosse pensar em um roteiro, faria algo anacrônico, porque acho que ele é uma pessoa anacrônica. Acho que está aí a resposta para sua inadequação - e, nesse sentido, me vejo um pouco nele -, tanto em sua fisique quanto em sua ironia. Acho que isso é o que traz esse brilho especial para ele”.

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