Cantora e compositora ganha biografia e musical em homenagem aos seus 80 anos de vida e 50 de carreira
Publicado em 12/09/2024
Atualizado às 10:26 de 01/10/2024
por André Bernardo
Em 2010, a cantora e compositora Leci Brandão, então com 66 anos, se candidatou ao cargo de deputada estadual pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Quando soube que tinha sido eleita, com 86,2 mil votos, telefonou para a mãe, Dona Lecy de Assumpção Brandão (1922-2019), no Rio de Janeiro. “Mãe, a senhora varreu sala de aula, moramos em escolas públicas, mas hoje sua filha foi eleita deputada pelo estado de São Paulo. Obrigada por tudo, minha mãe!”, agradeceu emocionada. Dia desses, Leci voltou a chorar. Foi assistindo ao espetáculo Na palma da mão. “Dona Lecy foi a pessoa que mais me inspirou nesta vida. Tenho dois sambas, ‘As coisas que mamãe me ensinou’ e ‘A filha da Dona Lecy’, que retratam o que ela representa para mim. Ela partiu em 2019, mas, ainda hoje, sinto muito a falta dela”, lamenta a cantora.
No musical, Leci Brandão é interpretada por Tay O’Hanna e Dona Lecy por Verônica Bonfim. Tanto Tay quanto Verônica elegem a cena em que a mãe canta “Ombro amigo” (1977) para a filha como uma das mais emocionantes. “É uma música muito importante para a comunidade LGBTI+, por ser uma das primeiras a falar abertamente sobre o assunto”, afirma Verônica. “A cena mostra uma mãe acolhendo sua filha, e ser acolhido pela família é o sonho de toda pessoa LGBT. Eu mesma vivi essa cena quando contei para a minha mãe que sou lésbica”, complementa. Para Tay, que se identifica como uma pessoa trans não binária, Na palma da mão é uma homenagem mais do que merecida à cantora e compositora. “Precisamos homenagear os nossos em vida, e Leci Brandão merece todas as nossas homenagens”, diz. Fazem parte do espetáculo também o ator Sergio Kauffmann e os músicos Matheus Camará, Thainara Castro, Pedro Ivo e Rodrigo Pirikito.
O texto de Na palma da mão é de Leonardo Bruno e a direção é de Luiz Antonio Pilar. Bruno é autor, entre outros livros, de Canto de rainhas – o poder das mulheres que escreveram a história do samba (Agir, 2021). “Escrevi a partir de um alfabeto sentimental, um ABCDE que faz parte da minha memória musical: Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares. O ideal era que fosse um ABCDEL, porque Leci Brandão também faz parte do grupo de grandes cantoras de samba que fizeram história no país”, explica. “Já nos anos 1970, [Leci] abordava, em seus primeiros discos, temas como racismo, homofobia, desigualdade social, misoginia e até a questão indígena”, destaca Bruno. Já Pilar foi o diretor que, em 1996, convidou Leci para interpretar a líder quilombola Severina na novela Xica da Silva, da extinta TV Manchete. “Não sabia que, tanto tempo depois, Pilar tinha mais surpresas guardadas para mim. É um sujeito que não se cansa de me emocionar”, agradece a artista.
À frente de seu tempo
Prestes a completar 80 anos, Leci Brandão da Silva nasceu no dia 12 de setembro de 1944, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Nasceu em Madureira, berço de duas das mais tradicionais escolas de samba, a Portela e o Império Serrano, mas foi criada em Vila Isabel, terra natal de dois dos mais respeitados sambistas cariocas, Noel Rosa (1910-1937) e Martinho da Vila, em uma casa de cômodos no número 399 da Boulevard 28 de Setembro, a principal do bairro. Sua mãe era servente. Por essa razão, quando criança, Leci morou em três escolas públicas: Equador, em Vila Isabel; Artur Azevedo, na Pavuna; e Nicarágua, em Realengo. “O trabalho da minha mãe era varrer sala de aula. Ela varria e eu, filha única, ajudava. Varríamos de manhã, à tarde e à noite, para a turma do supletivo. De varrer sala de aula, modéstia à parte, eu entendo bem”, brinca a cantora, que se tornou a primeira mulher a participar da ala de compositores de sua escola do coração, a Estação Primeira de Mangueira, em 1972.
Leci Brandão não queria entrar para a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), nem para a Estação Primeira de Mangueira. Só entrou, revela, porque foi convidada. No caso da Alesp, por Orlando Silva e Netinho de Paula, dois filiados do partido; no caso da Mangueira, por Zé Branco, compositor da escola. À época, só havia Dona Ivone Lara (1921-2018) como integrante da ala dos compositores da Império Serrano. “Quando cheguei na Mangueira, todos ficaram espantados: ‘Por que você trouxe essa menina aqui?’, perguntaram. Zé Branco explicou que eu era compositora e que ele gostava dos sambas que eu fazia”, recorda a sambista, então com 27 anos. “O presidente da ala propôs que eu escrevesse uma carta e fizesse um samba de terreiro. Fiz a carta e compus o samba com o maior prazer, e fui aprovada. Foi uma universidade na minha vida.” A ala de compositores da Mangueira foi fundada em 1939, por Cartola (1908-1980), e contou, entre outros mestres, com Nelson Cavaquinho (1911-1986), Jamelão (1913-2008) e Nelson Sargento (1924-2021). “Compor samba, naquela época, era mais fácil do que hoje. Construí meu repertório a partir de crônicas da vida cotidiana. Nunca aprendi a tocar instrumentos de harmonia: violão, cavaquinho ou piano. É Deus que manda: letra e música. Coisa de orixá”, ri Leci.
Na opinião do jornalista e historiador Rodrigo Faour – autor das biografias sobre Ângela Maria (1929-2018), Dolores Duran (1930-1959) e Cauby Peixoto (1931-2016), entre outras –, se tem uma palavra que resume a importância da vida e da obra de Leci Brandão, essa palavra é “pioneirismo”: “Sempre teve comprometimento com pautas identitárias, muito antes de virar moda. Um de seus diferenciais é o pioneirismo dentro da comunidade LGBTI+, quatro décadas antes da geração de Johnny Hooker e Pabllo Vittar”. Nos anos 1970, Leci compôs uma série de canções, como “Assumindo” (1974), “As pessoas e eles” (1976) e “Chantagem” (1980), voltadas para o público LGBTI. “Ainda teve a coragem de assumir sua orientação sexual no jornal alternativo gay Lampião da Esquina. Coragem, aliás, sempre foi uma marca da artista”, enaltece Faour.
No palco ou na tribuna
Se, no samba, Leci Brandão realizou a façanha de ser a primeira mulher a entrar para a ala dos compositores da Mangueira, na política, conquistou outra proeza: é a primeira negra a cumprir quatro mandatos consecutivos na Alesp. Como parlamentar, ela se dedica à promoção da igualdade racial e do respeito às religiões de matriz africana e à defesa das populações indígena, quilombola e LGBTQIA+, entre outras causas. Não por acaso, seu gabinete é conhecido como “quilombo da diversidade”. “O povo de São Paulo tem muito respeito pela minha história. Minha formação intelectual é muito pouca. Não tenho formação acadêmica ou diploma universitário. O que sei, aprendi com Dona Lecy. Foi ela quem me ensinou o que é certo e o que é errado”, afirma a sambista, que, em 2002, trocou o Rio por São Paulo. “Nunca vou virar as coisas para o Rio, mas São Paulo sempre me valorizou como compositora. Nunca me tratou mal pelo fato de eu ser carioca”, afirma.
A trajetória de Leci, tanto a artística quanto a parlamentar, inspirou Fernanda Kalianny Martins Sousa, mestra em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a escrever A filha de Dona Lecy (Editora Gota, 2022). Para a autora da biografia que nasceu como dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 2016, não houve ruptura, e sim continuidade entre uma carreira e outra. “Leci Brandão é uma artista que sempre fez política. Muito antes de ‘estar deputada’, como ela mesma gosta de dizer. Nas letras de suas músicas, sempre se preocupou com diferentes minorias, como a comunidade LGBT”, observa Sousa. Leci concorda. “Quando entrei para o PCdoB, eles me disseram: ‘Você era comunista e não sabia’. ‘Como assim? ’, eu quis saber. ‘Olhe as suas letras. Suas músicas falam de problemas sociais’, explicaram.”
Em março, Leci voltou à Alesp depois de alguns dias de licença. No início do ano, ela interrompeu a carreira artística para cuidar da saúde. “Fiquei mal, perdi alguns quilos”, relata. “Juntou a diabetes com a hipertensão. Negócio louco.” No ano passado, durante uma ponte aérea, ela levou outro susto: tentou pegar o lanche que a comissária de bordo ofereceu, mas a mão direita não deixou. Saiu do avião direto para o hospital. Por medida de precaução, o médico pediu que maneirasse na hora de tocar o pandeiro e o tantã, dois de seus instrumentos de percussão favoritos. “São problemas da idade. Não sou mais a mesma Leci de antigamente. Estou me recuperando aos poucos. Não perdi o ânimo, não”, avisa a sambista, que já voltou a tocar tantã e deixa o pandeiro para a hora de “Zé do Caroço” (1985), que costuma encerrar seus shows. Uma das mais famosas do seu repertório, a canção já foi regravada por artistas como Revelação, Seu Jorge e Anitta. “Meu sentimento é de orgulho. Fiz coisas que não esperava fazer. Fico emocionada quando os mais jovens dizem que têm em mim uma referência”, afirma.
Cantora de protesto
“Zé do Caroço” foi composta em 1978, mas Leci só conseguiu gravá-la em 1985. Inspirada na história de José Mendes da Silva (1941-2003), líder comunitário que morava no Morro do Pau da Bandeira, em Vila Isabel, a música foi rejeitada pela PolyGram por seu conteúdo social. Como diz a letra, Zé do Caroço mandou instalar um sistema de alto-falante na laje de sua casa. Por meio dele, alertava a população da comunidade para diversos perigos, como o risco de desabamento por causa da chuva. Indignada com a recusa da gravadora, Leci pediu demissão e passou cinco anos sem gravar. “Entrei em desespero e tive depressão. Mas não me arrependo do que fiz”, analisa. Ela foi a um terreiro em São Gonçalo e um caboclo, o Rei das Ervas, garantiu que, em breve, Leci retomaria a carreira – mas, antes, faria um show no exterior. Em 1984, a cantora foi convidada para se apresentar em Luanda, a capital de Angola. No ano seguinte, assinou com a Copacabana e, finalmente, incluiu a faixa “Zé do Caroço” em um disco.
O LP de 1985 trouxe outro grande sucesso de Leci: “Isso é fundo de quintal”. No samba, a cantora presta homenagem a grandes representantes do gênero, como Bira Presidente, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho. Ao todo, ela já gravou 24 álbuns, entre compactos, LPs e CDs. O primeiro deles, um compacto duplo, foi Leci Brandão (1974), com quatro canções. Já no ano seguinte, lançou seu primeiro disco, Antes que eu volte a ser nada, com 12 músicas. Dessas, oito são dela. Com Cadê Marilza (1975), conquistou o segundo lugar em um festival universitário da extinta Gama Filho, em Piedade, no Rio. Em 1980, participou de outro festival: o MPB-Shell, da TV Globo. Ficou entre as 20 finalistas, com “Essa tal criatura” (1980), de sua autoria. A vencedora do festival daquele ano foi “Agonia”, composta por Mongol (1957-2021) e interpretada por Oswaldo Montenegro.
Em matéria de Carnaval, Leci Brandão já fez de tudo nesta vida: desde cantar na avenida (puxou o samba-enredo da Acadêmicos de Santa Cruz, em 1995) até comentar desfile (entre 1984 e 1993, das escolas do Rio e, entre 2002 e 2010, das de São Paulo). Até tema de enredo a cantora já foi: da Acadêmicos do Tatuapé, no Carnaval de 2012. Pé-quente, a escola tirou o segundo lugar e subiu para o grupo especial. “Se a missão de um artista é dar voz ao seu público, Leci Brandão talvez tenha sido a sambista que mais cantou sua gente. Não por acaso, sempre tem uma recepção calorosa nos palcos onde pisa. A plateia sempre segue, sem pestanejar, seus comandos para bater ‘na palma da mão’”, afirma Leonardo Bruno, citando um dos bordões da sambista.