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João Ubaldo Ribeiro: mais do que um homem de letras, um contador de histórias

Dez anos depois de sua morte, o escritor baiano continua vivo em adaptações e reedições de sua obra, como “A casa dos budas ditosos”

Publicado em 18/07/2024

Atualizado às 10:01 de 26/08/2024

por André Bernardo

Nos anos 1990, Cacá Diegues recebeu uma ligação de Sônia Braga. A atriz queria propor a adaptação de Tieta do Agreste (1977), romance de Jorge Amado (1912-2001). Proposta aceita, o cineasta não pensou em nenhum outro nome que não fosse o de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) para escrever o roteiro. Por via das dúvidas, telefonou para a casa do autor do livro para saber o que ele achava da ideia. “A escolha não podia ser melhor”, concordou o baiano, da Casa do Rio Vermelho, em Salvador, “mas duvido que João Ubaldo aceite”.

No mesmo dia, Cacá Diegues telefonou para João Ubaldo. Cheio de dedos, avisou que precisava vê-lo para pedir um favor – um favor que só ele, e mais ninguém, seria capaz de fazer. Diante de tal pedido, marcaram um encontro para o mesmo dia. Ao se encontrarem, Ubaldo pediu ao amigo que fosse direto ao assunto. Quando o cineasta explicou do que se tratava, o escritor respirou aliviado: “Graças a Deus! Do jeito que você me falou no telefone, pensei que fosse me pedir um rim para algum transplante”, gracejou.

João Ubaldo aceitou o convite. Mais do que isso: voltou a trabalhar com Cacá em Deus é brasileiro (2003). A ideia original, como conta o cineasta aos Cadernos de literatura brasileira (1999), do Instituto Moreira Salles (IMS), era fazer um filme mesclando todos os contos de Livro de histórias (1981) em um só roteiro. O tempo passou e, dez anos depois, a coletânea foi relançada com o título de Já podeis da pátria filhos (1991). E, em vez de adaptar os 17 contos do livro, Cacá Diegues optou por filmar apenas um deles: O santo que não acreditava em Deus.

Com Antonio Fagundes no papel principal, Deus é brasileiro levou 1,6 milhão de espectadores aos cinemas – é o segundo filme de maior bilheteria do diretor, atrás somente de Xica da Silva (1976), com 3,1 milhões de pagantes. Não por acaso ganhou continuação, Deus ainda é brasileiro, previsto para ser lançado neste ano. “João Ubaldo foi um presente que Glauber me deu”, orgulha-se, numa referência ao amigo que apresentou os dois.

Um dos maiores de sua geração

Dez anos depois de sua morte, vítima de embolia pulmonar no dia 18 de julho de 2014, João Ubaldo continua vivo, mais do que nunca. Uma das provas é o monólogo A casa dos budas ditosos, dirigido por Domingos de Oliveira (1936-2019) e estrelado por Fernanda Torres. Entre idas e vindas, está em cartaz desde 2003 e já foi visto por 2 milhões de pessoas. “Um mês atrás, precisei de um amigo. Coisa rara, pedi um encontro. Ele me recebeu em casa, num domingo chuvoso, e conversamos longamente. Não sabia, mas era a despedida”, relatou a atriz em crônica publicada no jornal Folha de S.Paulo de julho de 2014 e incluída no livro Sete anos (2014).

Na imagem está um homem branco, de cabelos curtos e grisalhos e bigode. Ele usa uma camisa clara de botões e óculos de grau.
João Ubaldo Ribeiro (imagem: Divulgação)

Outra prova: Viva o povo brasileiro (1984), a obra-prima que ganhou o Jabuti, um dos mais importantes prêmios da literatura brasileira, também chegou ao teatro. Virou musical pelas mãos do diretor André Paes Leme e do compositor Chico César. Mais uma? A coletânea Arte e ciência de roubar galinhas (1999), de crônicas, acaba de ser relançada pela coleção Jovem leitor, da Nova Fronteira. “João Ubaldo foi um dos maiores escritores de sua geração”, destaca a advogada Emília Roters Ribeiro, sua primogênita. “Recordo que ele disse, no seu discurso de posse na ABL, que não era um homem de letras, mas um contador de histórias. Foi, na verdade, um pensador da nossa identidade, da identidade do Brasil e do seu povo. Aí está um pouco do seu legado.”

João Ubaldo Ribeiro alternou a publicação de romances e crônicas. Volta e meia, ele se aventurava por outros gêneros: contos, como Vencecavalo e o outro povo (1974); ensaios, como Política: quem manda, por que manda e como manda (1981); e infantojuvenis, como Vida e paixão de Pandonar, o cruel (1983), A vingança de Charles Tiburone (1990) e Dez bons conselhos de meu pai (2011).

Sua estreia na literatura se deu em 1968, com o romance Setembro não tem sentido. O título escolhido tinha sido A semana da pátria, mas o editor João Rui Medeiros teve receio de que, a exemplo do que aconteceu com A luta corporal (1954), de Ferreira Gullar (1930-2016), que foi exposto na seção de esportes, A semana da pátria fosse parar na estante de moral e cívica. “Foi um livro juvenil, típico romance de estreia, em que eu acreditava que podia mudar o mundo”, analisou Ubaldo no jornal O Globo de 3 de agosto de 1997. “Acho ruim, mas não o renego.” Viva o povo brasileiro também teve o título mudado. O original era Alto lá, meu general!.

“Conheci João Ubaldo por intermédio do meu pai, Sebastião Lacerda. Era uma novidade na cena literária, embora já com seus 40 anos. Assim, com míseros 12 anos, ouvi pela primeira vez falar do seu nome”, relata o escritor e editor Rodrigo Lacerda. “O impacto da chegada de João Ubaldo arrebatou, um a um, todos os adultos com quem eu me relacionava. Além de elogiarem suas virtudes literárias, pareciam arrebatados com o escritor em si, dono de grande brilho pessoal. Recontavam as piadas que João Ubaldo fizera na última festa e descreviam-no sempre como uma das pessoas mais divertidas que já tinham conhecido.”

Na imagem estão dois homens, ambos sentados em poltronas e próximos a uma mesa, que está ao centro. O primeiro, mais jovem, tem os cabelos escuros e usa camisa de botões e mangas curtas na cor verde e calça jeans. O segundo, mais velho, tem os cabelos grisalhos, usa camisa bege e calça jeans. Ambos seguram microfones e, atrás deles, há um móvel d madeira.
Rodrigo Lacerda entrevista João Ubaldo Ribeiro (imagem: Acervo pessoal)

Uma brincadeira como outra qualquer

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu no dia 23 de janeiro de 1941, em Itaparica, na Bahia. Seu pai era Manoel Ribeiro e sua mãe, Maria Felipa Osório Pimentel, ambos advogados. O casal teve mais dois filhos: Sônia Maria e Manoel. Aos 2 meses de idade, ele se mudou com a família para Aracaju, onde passou a infância. Na crônica Memória de livros (1995), relata que cresceu numa casa abarrotada de livros. Eram tantos que mal cabiam na casa. Muitos ficavam espalhados na cozinha e no banheiro.

Um dia, seu pai o levou a “uma senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo”. “Este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler”, queixou-se o patriarca da família Ribeiro. Detalhe: João Ubaldo tinha apenas 6 anos! Com medo de levar uma surra, passou a ler dois ou três livros por dia. Muitas vezes não entendia nada do que lia, mas gostava de ler. “Os livros eram uma brincadeira como outra qualquer”, diz o autor na mesma crônica, “embora certamente a melhor de todas”.

Com 11 anos, João Ubaldo voltou a morar na Bahia. Além do inusitado hábito de copiar os sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697), adquiriu outro igualmente estranho: decorar 50 palavras de origem inglesa por dia. Deu certo. Já adulto, foi o próprio João quem traduziu duas de suas obras, Sargento Getúlio (1971) e Viva o povo brasileiro (1984), para a língua de William Shakespeare. “Uma curiosidade: ele passou mais tempo traduzindo Viva o povo brasileiro do que escrevendo o romance”, conta Emília Ribeiro, sua filha.

Sargento Getúlio, a propósito, virou filme em 1983, graças ao diretor Hermano Penna, que convidou Lima Duarte para o papel principal. Já Viva o povo brasileiro teve os direitos vendidos para André Luís Oliveira, mas nunca saiu do papel. E, por falar em cinema, João Ubaldo, ainda no colégio, fez amizade com o futuro cineasta Glauber Rocha (1939-1981), que o apelidou de “Hemingway da Bahia”. Nessa época, Ubaldo escrevia redações para os colegas de turma em troca de refrigerante e pastel.

Trabalhou como repórter em dois jornais: Jornal da Bahia e A Tribuna da Bahia. Fluente no inglês, entrevistou o escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963), autor de Admirável mundo novo (1932). Por imposição do pai, formou-se advogado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), mas nunca exerceu a profissão. Em 1964, concluiu o mestrado em ciências políticas na Universidade do Sul da Califórnia (USC).

Um companheiro de trabalho maravilhoso

João Ubaldo se casou três vezes: em 1960, com Maria Beatriz Moreira Caldas, sua colega na Faculdade de Direito; em 1969, com a historiadora Mônica Maria Roters, com quem teve Emília e Manuela; e em 1980, com a psicanalista Berenice Batella, mãe de Bento e Francisca. Em 1991, ao regressar de uma temporada de 15 meses na Alemanha, trocou Itaparica pelo Rio de Janeiro. Alugou o apartamento de Caetano Veloso no quarto andar de um prédio na General Urquiza, no Leblon.

Na imagem, um homem de cabelos e bigode escuros, usando óculos de grau e sunga, está sentando em uma cadeira na praia.  Ao lado dele estão duas meninas. Uma delas, que está sentada, tem em volta das pernas um bambolê.
João Ubaldo na praia com Emília e Manuela, filhas de seu segundo casamento (imagem: Acervo pessoal)

Nessa época, fez outro grande amigo: Geraldo Carneiro, responsável, ao lado de Walther Negrão, pela adaptação de O sorriso do lagarto. Juntos, Ubaldo e Carneiro adaptaram O santo que não acreditava em Deus (1993), O poder da arte da palavra (1994), A maldita (1995) e Danada de sabida (1997). “Era um companheiro de trabalho maravilhoso”, relata Carneiro. “Tinha horror de escrever roteiros. Talvez por isso fazia questão de se livrar do ofício o mais rápido possível para se dedicar a tarefas mais amenas, como conversar fiado.”

Certa ocasião, os dois, por sugestão de Berenice, escalaram a “Seleção do Bem”. No gol, de braços abertos, Jesus Cristo. Nas laterais, Buda e São Francisco. E assim por diante. “Só sossegamos quando escalamos o número 10, William Shakespeare. Enfim, estávamos salvos”, diverte-se. No dia 9 de outubro de 1993, João Ubaldo foi eleito para a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Na disputa pela vaga de Carlos Castello Branco (1920-1933), ele conquistou 21 votos e o piauiense Álvaro Pacheco 13.

Se não escrevesse, enlouquecia”

 Em seu apartamento no Rio, João Ubaldo acordava cedo – “indecentemente cedo”, frisou, em certa ocasião, ao sobrinho Juva Batella, autor de Ubaldo – ficção, confissão, disfarce & retrato (Vieira & Lent, 2016). Acordava às 4 horas, escrevia até as 11 horas, almoçava às 13 horas e dormia até as 18 horas. Quando começava a criar um livro novo, sempre de bermuda e sandália, ele se obrigava a escrever três laudas por dia. E recusava convites para participar de eventos literários. Não fosse assim, o livro desandava.

 Foi o que aconteceu com O rei do mundo, sobre um milionário inescrupuloso que dominava as pessoas. Certo dia, sentou para continuar a história e o que saiu foi O feitiço da Ilha do Pavão (1997). “Na adolescência, eu me lembro de muitas vezes chegar da noite em casa e encontrar meu pai acordando para escrever”, recorda a artista plástica Chica Batella, sua caçula. “Não tinha isso de só sentar para escrever quando sentia que tinha algo vindo, era labuta. Muitas vezes, acabava o dia reclamando que só tinha escrito asneiras, mas escrevia.”

Na imagem está um homem  de cabelos e bigode escuros, sem camisa e de óculos de grau. Ele segura um bebê nos braços que tem os cabelos lisos e loiros, usa camiseta branca e tem uma chupeta na boca.
João Ubaldo e sua filha caçula, Chica Batella. (imagem: Acervo pessoal)

Um dos eventos literários de que João Ubaldo participou foi a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1994. “Lembro-me da chegada esbaforida do João, num mau humor que, diga-se, nunca lhe fora peculiar, a queixar-se de um jornalista francês que lhe tomara tempo demais, quase o impedindo de chegar a tempo da sua apresentação”, recorda o acadêmico Antônio Torres. Por acaso ou não, a agente literária Ray-Güde Mertin escolheu Moacyr Scliar (1937-2011) para abrir os trabalhos. “Isto é uma covardia!”, brincou Scliar, fingindo indignação. “Botaram dois baianos em uma mesa com o pobre de um gaúcho. Depois reclamam que o Rio Grande do Sul quer se separar do resto do Brasil. De fones nos ouvidos, a plateia foi abaixo”, relata Torres.

Nas horas livres, João Ubaldo gostava de fazer imitações – a mais elogiada é a do trompetista americano Louis Armstrong (1901-1971) –; tomar sorvete – seu sabor favorito era o de abacaxi, misturado com salada de frutas e leite condensado, conforme ensinou em um Programa do Jô de 2005 –; e ver futebol – no Rio, era torcedor do Vasco da Gama e, na Bahia, do Vitória. Como jornalista, cobriu diversas Copas do mundo, como a do México, em 1986; a dos Estados Unidos, em 1994, quando o Brasil foi tetracampeão do mundo; e a da Alemanha, em 2006.

Entre outros prêmios, ganhou o Jabuti duas vezes – a primeira em 1972, por Sargento Getúlio, e a segunda em 1985, por Viva o povo brasileiro – e o Camões, o mais importante da língua portuguesa, em 2008. À época, soube da notícia por uma mensagem deixada na secretária eletrônica pelo acadêmico Eduardo Portella (1932-2017). “Para ser sincero, não acho nada demais. Ganhei porque mereço”, limitou-se a dizer. “Meu pai, como todos nós, tinha qualidades e defeitos. Mas sempre foi muito brincalhão e gostava muito de dar risada”, conta Chica Batella. “Talvez a lembrança que mais me acompanhe é de quando entrei para a Faculdade de Belas Artes. Meu pai me chamou para conversar, muito sério, perguntando se era aquilo mesmo que eu queria e se eu conseguia imaginar minha vida sem pintar. Porque ele, se não escrevesse, enlouquecia”, relata a caçula.

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