Artistas que trabalharam com Fernanda Montenegro contam o que aprenderam com ela ao longo da vida e de suas carreiras
Publicado em 16/10/2024
Atualizado às 11:56 de 15/10/2024
por Luísa Pécora
No livro de memórias que lançou em 2019, Fernanda Montenegro escreveu sobre a troca de conhecimento que ocorre entre atores no momento em que trabalham juntos ou assistem uns aos outros. “Os atores têm uma herança oficiosa, subliminar, de transferência na aprendizagem que nos liga através dos tempos – um ator que viu outro ator, que trabalhou com outro ator, que antecedeu a outro ator, que foi discípulo de mais outro e, antes, de muitos outros e outros”, explicou. “Trago em mim e conservo gestos, entonações, sentimentos de atores que vi pela vida. Daqui a cinquenta, cem anos, alguém estará em cena de posse de um gene no DNA de um ator contemporâneo. E essa herança sempre está ligada ao experimento. E ao que fala ao seu instinto.”
Tal passagem de Prólogo, ato, epílogo inspirou esta reportagem a comemorar os 95 anos de Fernanda, completados neste 16 de outubro de 2024, de forma diferente. Em vez de relembrar a trajetória pessoal e profissional da atriz ou listar seus principais trabalhos e prêmios, convidei atores brasileiros de diferentes gerações a responder: o que aprendi com Fernanda Montenegro?
Todos esses artistas trabalharam com Fernanda em algum (ou em mais de um) momento de seus 80 anos de carreira, seja no teatro, no cinema ou na televisão. E todos também foram – e são – espectadores de suas peças, filmes, novelas e minisséries. Por isso, além de refletirem sobre a “transferência de aprendizagem” que os liga à atriz, eles destacaram as obras e atuações que mais os impactaram.
Alguns compartilharam conselhos dados por Fernanda; outros, observações de seu comportamento no set. E outros mencionaram a dedicação e a paixão da atriz pelo ofício, que se mantiveram firmes ao longo do tempo. No ano em que chegou aos 95, Fernanda lotou o Teatro Raul Cortez e levou milhares de pessoas ao Parque Ibirapuera, ambos em São Paulo (SP), com sua leitura da obra da filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986). Também está rodando um filme – Velhos bandidos, dirigido por seu filho, Cláudio Torres – e preparando-se para o lançamento de outros dois: é protagonista de Vitória, de Andrucha Waddington, e faz participação especial em Ainda estou aqui, de Walter Salles, candidato do Brasil ao Oscar de filme internacional.
Para Fernanda (ou Arlete, seu nome de batismo), a inquietação é condição profissional. “Por mais longa que seja a vida de um ator, ele não tem como declarar: ´Estou pronto´ ”, escreveu, também em Prólogo, ato, epílogo. “Embora no teatro se repita, dia após dia, o mesmo gesto, a mesma intenção, o mesmo texto, dentro da mesma encenação, repentinamente uma ‘faísca inesperada de percepção’ revela outra zona a seguir.”
Leia os depoimentos de atores e atrizes que trabalharam com Fernanda Montenegro:
Antonio Fagundes
“A primeira vez em que trabalhei com a Fernanda foi em 1968, numa peça do Gianfrancesco Guarnieri chamada Marta Saré. Eu tinha 20 aninhos, e de lá para cá a minha admiração, o meu respeito, o meu carinho, o meu grande amor por Fernanda Montenegro não pararam de cresver. E tenho certeza de que vão aumentar sempre, cada vez mais, porque, além de ser uma extraordinária profissional, uma batalhadora pela cultura, pela educação e pela inteligência brasileira, é uma pessoa boníssima, uma amiga que a gente quer sempre ter por perto. A gente aprende com a Fernanda aquilo que Fernando Pessoa já dizia: ‘A arte existe porque a vida não basta’*. É impossível destacar um único trabalho da Fernanda que seja importante, que seja bom. Mas, obrigado a falar sobre um, sou apaixonado pelo espetáculo As lágrimas amargas de Petra von Kant [1984]."
Carol Castro
“Para mim, Fernanda Montenegro sempre foi um ícone, uma fonte de inspiração, não só como artista e profissional, mas também como mulher e mãe. Sempre a admirei, li suas biografias, assisti a seus trabalhos. E sempre tive o sonho de trabalhar com ela. Quando cruzava com ela nos estúdios Globo ou em estreias de peça, ficava muito nervosa. Frio na barriga, mão gelada, suando. E sempre dizia isso para ela. Até que trabalhamos juntas em O juízo, que foi um filme completamente família, principalmente para ela: a filha, Fernanda Torres, escreveu; o genro, Andrucha Waddington, dirigiu; e o neto, Joaquim [Torres Waddington], interpretou meu filho. Eu observava a Fernanda trabalhando, e o que destacaria do que aprendi com ela é sua maneira de tratar o outro. Ou seja, não só o amor ao ofício e a dedicação que ela tem, mas também o ser humano incrível que ela é. Quando a vi trabalhando, em cena e fora de cena, foi que realmente a admirei muito mais. E levei isso para mim: temos de tratar o outro, qualquer pessoa, sempre com muito carinho. E [também aprendi] a já estar ali, pronta, sempre que chamam para ir para o set. Tivemos gravações noturnas – às 3, 4 horas da manhã – num lamaçal, e ela lá, guerreira, só aceitando ajuda quando realmente precisava. Então, foi a realização de um sonho e um grande aprendizado para mim. Entre seus trabalhos, destaco Central do Brasil [1998] , um filme que me emocionou e me emociona muito. É um Oscar que ela merecia ter levado.”
Carol Duarte
“O que aprendi com Fernanda Montenegro? Tem muito mistério na profissão de atriz. Se estudamos para dar vida a existências ficcionais ou reais, o fazemos para compartilhar com o outro esse abismo que é existir. Espantar a solidão. É perturbador ver uma grande atriz em relação profunda e comprometida com o ofício, porque ela dá carne àquilo que por vezes não conseguimos pôr em palavras. Fernanda Montenegro me choca por isto: é excelente em viver, é tanto que extrapola para outras e outras e outras. Fizemos Eurídice Gusmão em A vida invisível. Vi o filme pela primeira vez no Festival de Cannes. Não havia visto Eurídice mais velha, e naquela tela imensa aparece a grandiosa Fernanda como a nossa Eurídice. Fui raptada por uma extrema comoção. Seus olhos tão preenchidos de uma vida não vivida, profundeza em altíssimo nível. Fernanda Montenegro é a atriz que tem na sua história a história do teatro e do cinema brasileiro. Encenou brasileiros e estrangeiros, experimentou e se experimentou tanto nos palcos deste país! Ela dignificou o ofício, trouxe excelência, respeito e loucura, dessas que só as grandes têm ou tiveram. Ela é um norte em tempos que dispersam tanto o papel de uma atriz, confundido com o verbo influenciar, engajar. Vejo o verbo contar, compartilhar, e me lembro tanto de Fernanda Montenegro em Central do Brasil. Ela aponta um princípio da profissão. Uma atriz é aquela que conta através da sua carne uma história, e entra na nossa alma para nos lembrar que estamos ainda vivos.”
Carolina Oliveira
“Com a Dona Fernanda eu aprendi a ter paciência. Ela dizia que a televisão e o cinema são a ‘arte de esperar’ e que, se eu gostava mesmo de atuar, teria de lidar com isso para o resto da minha carreira. Desde então, algo se assentou no meu coração e eu nunca mais fiquei inquieta esperando por uma cena. Foi um conselho muito valioso, porque, de fato, a metade da minha carreira passei esperando, e graças a Fernanda Montenegro essa espera sempre foi tranquila, acompanhada de um livro ou de uma boa conversa com os colegas de trabalho. Depois de Hoje é dia de Maria, o trabalho dela que mais me marcou foi Central do Brasil.”
Fernanda Torres
“Bom, a minha mãe – Fernanda Montenegro, mas na verdade Dona Arlete – me ensinou a andar, a comer, a falar, a ir para a escola, a ter respeito pelas pessoas na vida. E na arte eu aprendi por osmose, né? Eles ensaiavam na mesa de jantar de casa. O elenco todo em volta daquela mesa em que a gente almoçava e jantava lendo Heiner Müller, lendo [Eugene] O’Neill, lendo Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes. O teatro era meio continuidade lá de casa. Meu pai, Fernando Torres, dirigia e produzia, mamãe também atuava… Família de circo, né? Acho que a peça dela que mais amei na vida, com meu pai inclusive, foi Seria cômico se não fosse sério [1976]. É uma peça do [Friedrich] Dürrenmatt, traduzida pelo Millôr Fernandes e dirigida pelo Celso Nunes. Era extraordinária essa peça, a mais incrível que vi deles. Esta e [a de] agora, mamãe fazendo Simone de Beauvoir, que é um negócio bonito demais, nossa senhora!”
Giovana Cordeiro
“Quando estava fazendo o teste para a minha segunda novela, O outro lado do paraíso [2017], descobri que a minha personagem, Cléo, seria neta da Fernanda Montenegro. Naquele momento, apesar do nervosismo, quis muito que o papel fosse meu. Nos momentos em que contracenamos, pude ter a dimensão exata do tamanho dessa mulher inspiradora. Devo a ela muito de quem sou e levo seus ensinamentos para a vida, como o seu respeito pelo set. Um conselho valioso, porém singelo, que Fernandona me deu foi: ‘Não pense, execute’ – no sentido de não racionalizar a nossa arte. Ela mantém viva em todos nós a vontade de estar no palco ou no estúdio para dar o nosso melhor e surpreender o público. Como espectadora, gosto muito dos filmes Central do Brasil [1998] e O auto da compadecida [2000]. Também me encantou o livro Fernanda Montenegro em o exercício da paixão [1990], de Lúcia Rito.”
Irene Ravache
"Com Fernanda Montenegro aprendi muito sobre as pausas e o fino senso de humor. Inigualáveis. Em teatro, destaco o espetáculo O amante de Madame Vidal [1973], de Louis Verneuil, com direção de Fernando Torres. Uma aula de como fazer esse tipo de comédia. E, em cinema, destaco Tudo bem [1978], de Arnaldo Jabor. Comédia com refinamento de interpretação é muito difícil, e ela é mestre no assunto! Extraordinária!”
Lázaro Ramos
“O que mais aprendi com Fernanda Montenegro foi vitalidade e paixão eterna pela profissão. Trabalhei com Dona Fernanda pela primeira vez quando eu tinha 20 anos de idade, na minissérie Pastores da noite [2002], meu primeiro trabalho para a televisão. E a vitalidade que encontrei naquele momento permanece anos depois, [como vi] trabalhando com ela no [programa] Mister Brau [2015-2018] ou no filme que estamos fazendo agora [Velhos bandidos]. Ela é uma eterna apaixonada pela profissão. É lindo vê-la no set. Ela não senta, ela está sempre vivendo o personagem, mesmo nos momentos de pausa. E a paixão que tem pelo fazer, ela coloca no momento de realizar as cenas. Central do Brasil é um símbolo grande para mim, é um trabalho dela pelo qual sou apaixonado. Poderia escolher também Eles não usam black tie [1981], mas Central do Brasil é um filme que até hoje me emociona cada vez que vejo. E sou uma pessoa mais feliz porque recebo os áudios de Dona Fernanda, que muitas vezes transcrevo. Em cada áudio tem um ensinamento que fica em mim para sempre.”
Marcélia Cartaxo
“Sou muito grata por toda a carreira de Fernanda Montenegro no teatro, na televisão e no cinema, e pelo que ela representa para a cultura em geral. Aprendi com a grande mestra que interpretar é vasto, tem muitas camadas. Entre tantos trabalhos marcantes de uma carreira tão consagrada, impossível não citar sua atuação em Central do Brasil. Uma entrega tão emocionante! Mas estar com ela em A hora da estrela [1985] foi muito marcante para mim. Meu primeiro filme, meu primeiro trabalho no cinema… e já foi com ela, que me recebeu com muito carinho e muito profissionalismo. Eu ficava encantada ao vê-la em cena e também trocando comigo e com a equipe nos bastidores. Rever esse filme é sempre revisitar um baú com tantas memórias, inclusive da nossa grandiosa Fernanda Montenegro, que entrega uma Madame Carlota inesquecível.”
Seu Jorge
“O que aprendi com Dona Fernanda foi a ouvir o set. Fizemos o filme Casa de areia, e ela é uma pessoa muito atenta ao set de filmagem, está escutando tudo. Isso eu aprendi com ela. E muita coisa também com a beleza de todos os seus trabalhos. Ela é impecável na televisão, no teatro e no cinema. Central do Brasil é um projeto muito marcante, assim como Eles não usam black tie.”
Vinícius de Oliveira
“Em termos humanísticos e artísticos, Fernanda é nosso maior bem. Por todo o seu legado esplendoroso e por toda a sua lucidez ao longo de toda uma vida. Uma mulher que luta fervorosamente pela sua arte e seu país e o faz com extrema soberba. Chegar aos 95 anos e fazer teatro para mais de 15 mil pessoas, como faziam os gregos nos grandes teatros de arena da era antiga, só reafirma o seu lugar junto ao que há de mais sublime na arte. Fernanda é aquela luz da aurora boreal que nos deixa boquiabertos com seu esplendor. Lembrar de Fernanda nesse lugar é fazer um exercício de resiliência, de busca constante pela lucidez, pela inventividade e pela possibilidade de fazer cada trabalho único. Sou grato por tudo! Destaco um filme: A falecida [1965], de Leon Hirszman.”
* A frase dita por Antonio Fagundes é atribuída a Ferreira Gullar, mas o poeta brasileiro, por sua vez, parece ter se inspirado em uma frase de Fernando Pessoa, que diz: "A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta."