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O ser-tão pragmático de Tom Zé

Na música do cantor e compositor baiano, uma forma de pensar para além da tradição ocidental

Publicado em 13/09/2024

Atualizado às 17:22 de 13/09/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

Tom Zé é, antes de tudo, um forte. Ou se fez forte, por, antes de tudo, ter nascido na pequena Irará, cidade que por vezes é reivindicada como parte do Recôncavo, sendo ao mesmo tempo, o começo do sertão baiano. Mas este antes de tudo é uma genealogia, e toda genealogia não deixa de ter sua dimensão mítica e, às vezes, mística, criando epifanias que amarram seu sentido. 

A modernidade é ela mesma uma máquina de criar epifanias, instantes mágicos em que a ordem, desordem ou sem sentido do cosmo se anuncia. Podemos citar diversos desses momentos nas descrições de Tom Zé sobre suas experiências em Irará:  quando trabalhava na loja do seu pai, ouvia no balcão com admiração a fala dos camponeses sertanejos, que procuravam vender/comprar mantimentos e, por vezes, deixavam dívidas e as promessas de pagamento – sempre cumpridas – para quando as chuvas permitissem; outro espanto quando descobriu o poder representativo das palavras escritas ao aprender a ler; outro ainda na juventude, quando leu Os Sertões de Euclides da Cunha, obra que lhe ofereceu um espelho problemático, já que reconhecia aquela gente que lutava pela alma em Canudos como as pessoas com as quais convivia em Irará, os sertanejos daquela terra ignota. A descrição de Euclides da Cunha, do sertanejo como sendo “antes de tudo, um forte” não deixa de ocultar o que havia de racismo científico em sua análise, que colocava aquele povo degenerado num lugar fora da possibilidade de pensamento. A ambiguidade desta epifania com Os Sertões marca um espanto diferente daquele que movia o pensamento grego diante da ordem do universo, o sentido aqui era negativo, de quem estava fora da ordem como parte de um lugar que é um “terrível fazedor de desertos”. Em resumo, com gabolice Tom Zé gosta de dizer que a leitura de Euclides o deixou analfabeto. 

Há muito para escrever sobre Tom Zé e sobre como sua canção pensa e faz pensar, mas aqui quero falar um pouco sobre como ele redescreve o sertão em sua narrativa sobre a Tropicália e justificar a importância do pragmatismo de Charles Sanders Peirce (1839-1914) na sua forma de ser/significar. Peirce foi um verdadeiro polímata, que aceitou o preço do ostracismo, da falta de reconhecimento e de uma vida de poucos recursos, por não ceder aos apelos de especialização e manter o caminho de seus interesses criativos diversos. Criador do pragmatismo norte-americano, primeira e maior contribuição filosófica dos Estados Unidos, que rompeu com a hegemonia da Europa a partir de uma crítica demolidora da modernidade/subjetividade cartesiana e da lógica aristotélica. Contra a ideia de intuição ou de qualquer certeza interna inefável,  o conhecimento em sua perspectiva se conecta com as práticas sociais, sendo continuamente suscetível de revisão (falibilismo); o pensamento não nasce de uma dúvida que levaria a uma grau zero cognitivo e descontextualizado, mas se move pela dúvida porque há necessidade de responder a um problema, algo que não está funcionando bem, por isso inventamos e testamos hipóteses, procurando articular respostas que gerem melhores práticas sociais. 

Em um texto relativamente recente (15/10/2017), publicado no jornal O Globo, Tom Zé explica a Tropicália articulando, ou melhor, insinuando possibilidades de vinculação entre nomes que formam o título: “Homero, Peirce, Caetano e Gil”. Aqui e na maior parte das vezes, o autor segue a fórmula pedagógica enunciada na canção "Tô" de Estudando o Samba (que diz: “Eu tô te explicando/ Prá te confundir/ Eu tô te confundindo/ Prá te esclarecer/ Tô iluminado/ Prá poder cegar/ Tô ficando cego/ Prá poder guiar”), por isso quer mais causar do que explicar “pela ordem das razões”. Mas há razões para seu dizer...

A ideia de que a Tropicália teve origem nas vanguardas modernistas, na poesia concreta, na antropofagia ou como reação ao rock internacional é considerada por Tom Zé um erro enorme. Por isso, ele criou sua genealogia da origem da Tropicália, numa descrição em que a paisagem sonora, a cultura e mesmo os silêncios do recôncavo e do sertão baiano formataram a percepção de mundo inicial de uma creche tropical em que estariam Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Capinam, Rogério Duarte, Torquato Neto e Tom Zé etc. Esse contexto inicial, antes de qualquer educação oficial, vinculado ao contato com uma forma de cultura oral e iletrada, que incorpora diversas tradições, que remontam ao resultado das invasões árabes em Portugal e Espanha no século VII, a poesia provençal; a Escola de Sagres (nas cheganças); as narrativas épicas de Rolando. Tom Zé utiliza o termo “moçárabes” para explicar a origem desse legado cultural, referência que por vezes é utilizada para explicar o desenvolvimento e diferença de Portugal.

Na narrativa de Tom Zé, o processo de educação formal foi para essas crianças uma espécie de ocultamento dessa lógica da oralidade, para a encucação da perspectiva aristotélica, da cultura letrada, individualista e moderna. Na contracapa do álbum Tropicália Lixo Lógico (2012) o autor explica a origem do que chama de lixo lógico: “[De] 0 a 2 anos, a placa mental está virgem e faminta. Nunca mais, durante toda a vida, o ser humano aprenderá com tal intensidade. Aí reside a força do aprendizado na creche tropical. Só a partir da escola primária, que para nós começava aos 6 ou 7, tem início o contato com a organização do pensamento ocidental promovida por Aristóteles — um choque delicioso —, cuja comparação com a creche desencadeia o lixo lógico”. 

As crianças desta creche tropical sairiam de uma forma de existir próxima da Idade Média, eram “Analfatóteles” – ou seja, iletrados em Aristóteles (384 a. C.-322 a. C.), para viajar no tempo na direção da cultura industrial/letrada. Mas, por que propor esse desvio em relação a Aristóteles? Peirce nos oferece uma resposta quando explica seu projeto filosófico, considerando que “o aristotelismo é balbuciado em todos os quartos de criança, que o “senso comum inglês”, por exemplo, é completamente peripatético, e que os homens comuns vivem tão completamente dentro da casa do estagirita que tudo o que veem fora das janelas lhes parece incompreensível e metafísico”. Embora o próprio Peirce se apresentasse como um aristotélico, sua proposta é de novas categorias para pensar a experiência (que seriam a primeiridade, ou qualidade; secundidade ou relação e a terceiridade ou representação, as quais se desviam da busca por substâncias/essências, para tratar de relações e efeitos práticos, pensando a lógica como semiótica (teoria dos signos). Aqui não precisamos descrever o modo como Peirce articula esses conceitos, é suficiente ouvir como Tom Zé os utiliza em uma entrevista publicada no livro Tom Zé: Encontros (2012), organizado por Heyk Pimenta: “Eu tive um ponto em que eu vivi como aquilo que Charles Sanders Peirce, esse filósofo americano, que começou a ser respeitado, inventor da semiótica, chama de 'primeiridade', quer dizer, é viver no estado de simplesmente estar ali. Eu convivi com a música, nesse estado de simplesmente estar com ela, sem nenhuma atenção para ela, durante muito tempo, porque minha cidade vive a vida e a música, e o tempo, da maneira chamada 'o modo de viver do tempo redondo do mito', em tudo gira em torno da Festa da Padroeira e das festas que se seguem, e em cada uma dessas ocasiões ocorre uma coisa festiva e musical. A música não tem nenhum sentido de progresso, nem de modificação”.  

Em resumo, poderíamos dizer que a filosofia de Aristóteles e sua lógica centrada na distinção entres substâncias/essências seriam um pressuposto para o pensamento letrado (como provam as próprias categorias gramaticais), mas a perspectiva relacional de Tom Zé parte de um mundo de cultura oral e temporalidade circular mítica. Peirce também descreve como o próprio processo de construção de inferências, muitas vezes tem pressupostos que não dominamos, que advém de fatores inconscientes que são parte de nossa relação com o mundo. Essas inferências a-críticas ajudam a entender a ideia de “lixo lógico” que, na avaliação de Christopher Dunn, pode ser relacionada com a vivência de temporalidades distintas, que repercutiriam em modos diferentes de pensar, criar hipóteses, experimentar e criar (como sintetiza a canção “Tropicália lixo lógico”: “Não era melhor, tampouco pior/ Apenas outra e diferente a concepção/ Que na creche dos analfatóteles regia/ nossa moçárabe estrutura de pensar/ Mas na escola, primo dia,/ Conhecemos Aristóteles,/ Que o seu grande pacote/ De pensar oferecia./ Não recusamos/ Suas equações/ Mas, por curiosidade, fez-se habitual/ Resolver também com nossas armas a questão –/Uma moçárabe possível solução/ Tudo bem, que legal,/ Resultado quase igual,/ Mas a diferença que restou/ O lixo lógico criou)”.  

Levando em conta a perspectiva peirciana, a própria pretensão essencialista e positivista de Euclides da Cunha perde qualquer força científica e pode ser redescrita ou reapropriada como parte da necessidade de tentar compreender as próprias formas de relação com os signos e interpretação do mundo. Por isso mesmo, o sertão de Tom Zé é também o de Guimarães Rosa. Ora, Tom Zé costuma dizer que os períodos trabalhando no balcão da loja de seu pai foram para ele uma outra universidade. Mas essa Universidade do Sertão Pobre (Uspo), pragmática e contextualizada, que busca salvar e aprender com as aparências ao invés de desvelar essências se oporia ao universalismo sudestino da Universidade de São Paulo (USP): “O tipo de inteligência a que eu me refiro e que procuro na minha música não é uma inteligência cartesiana, que a universidade ensina. As pessoas do povo têm uma inteligência que a gente ignora, uma inteligência não-cartesiana, não-aristotélica. Não trabalho pra um fracasso. Não trabalho para a USP. Não trabalho com pessimismo. Eu trabalho com otimismo”, diz ele noutro trecho de Tom Zé: Encontros.

Agora podemos revisitar as provocações do texto de Tom Zé “Homero, Peirce, Caetano e Gil”: ora, se as canções de Homero e a cultura oral grega geraram este mundo ocidental aristotélico, as canções da tropicália prometem ser a ponte para trazer a potência de formas de pensar diferentes. Isso porque, tendo como gatilho disparador a antropofagia, o teatro de vanguarda, o rock internacional, a poesia concreta etc., a Tropicália misturou esses elementos ao lixo lógico em que foi moldada. Assim, o efeito das canções Caetano Veloso e Gilberto Gil aparece descrito na canção “Tropicália Jacta est”: “Domingo no parque sem documento/ Com Juliana-vagando contra o vento/ Saímos da nossa Idade Média nessa nau/ Diretamente para a era do pré-sal”. 

No referido texto de 2017 a descrição é também épica: “Vivíamos uma ditadura e, quando as primeiras canções da Tropicália ressoaram nas ondas do rádio, criaram uma espécie de rede social avant la lettre, uma excitação sensorial tão forte, que todos os jovens, em todos os estados, se sentiram armados de um fuzil semiótico que estraçalhou nossos resquícios de Idade Média e levou o país, de um salto, para a segunda revolução industrial, com prenúncios da teoria dos quanta de Planck, da improbabilidade de Heisenberg, da entropia da segunda lei da termodinâmica, da linguagem do cartaz e do mosaico da TV”.

Umberto Eco considerava que a forma da obra de arte contemporânea corresponde à epifania da estrutura epistemológica e científica mais avançada de seu tempo, por isso Tom Zé faz rimar a Tropicália com a física mais avançada. Talvez a ênfase em Caetano e Gil como protagonistas desse romance possa ser relativizada por uma declaração do próprio Tom Zé em entrevista de 1998 (também presente no Tom Zé: Encontros): “Nunca abandonei o tipo de mosaico ético que rege o espírito do Recôncavo e do Nordeste. Acho que o tropicalismo adotou novos desejos, novos objetivos e teve que mudar essa ética. Isso foi importante, útil e necessário, produziu riquezas estéticas. Mas eu estive fora dessa postura. Basta ler uma página de Guimarães Rosa para saber a segunda linguagem que tive na minha infância e perceber uma ética e uma estética embutidas ali”.

A mitologia que Tom Zé propõe tem uma série de “ãns” e “õns”, mas ele a fez com um sentido de cotidianizar a estética (Luiz Tatit) e salvar as aparências, dando a este gesto um sentido ético e descolonizador. Acredito que essa mitologia continua sendo articulada, ganhando novos elementos (por exemplo, no mais recente álbum, Língua Brasileira, de 2022, dialoga com as culturas africanas e indígenas), mas permanecerá aberta (porque não é ciência, é espanto). Um espanto que faz pensar e reconhecer as diferenças abissais que dividem o país. Esse sertão de Tom Zé é intensidade, é um ser-tão pragmático para uso homeopático. Tom Zé tem essa força: ouça!

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
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