O cineasta Gabriel Martins encerra a série “A Copa é nossa” escrevendo sobre sua relação de amor, por vezes complexa, com o futebol
Publicado em 17/12/2022
Atualizado às 17:21 de 16/12/2022
Durante a Copa do mundo do Catar 2022, o Itaú Cultural publica A Copa é nossa, uma série de textos em que artistas compartilham suas relações e memórias com o futebol e o torneio.
por Gabriel Martins
Quando me convidaram para escrever este texto, veio um filme na cabeça, um fluxo de imagens e sons que remetiam à Copa do mundo e a essa arte futebol que me é tão cara. Não sou hoje aquele que acompanha com extremo afinco todas as competições mundiais, todos os campeonatos, como em outros momentos da vida. Amo o Cruzeiro Esporte Clube desde criança e hoje ainda mais, pós-rebaixamento e renascimento. Já acompanhei com afinco no passado as campanhas do incrível Arsenal de 2003 e também o Celtic quando Larsson jogava por eles. O motivo? Não sei. Há coisas que a gente não consegue explicar.
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O cinema e a música, por vezes, me ocupam mais que o esporte, e vez ou outra a NFL e a NBA, principalmente, também me roubam mais a atenção e o tempo. Mas gosto, sempre gostei, de futebol. Gosto a ponto de detestar, criticar e voltar como quem volta abalado para um relacionamento passional mas provavelmente um tanto abusivo. Acho o melhor esporte. De jogar, ver, ir ao estádio. Amo, talvez ainda mais, a Copa do mundo. Ela me provoca em uma percepção de mundo que eu até acho, no fundo, vazia: territórios, nações, países, divisões. Mas sou brasileiro, me vejo brasileiro. E um brasileiro que gosta muito de futebol, o que é pior ainda.
O fluxo de imagens e sons: gol de falta do Branco; a jogada que leva ao chute de Carlos Alberto Torres; Roberto Carlos amarrando a chuteira; “virou passeio”; Seaman (do meu antigo Arsenal) “pescado” pelas redes a partir da falta (de sacanagem) do Gaúcho; Ronaldo sorrindo; Pelé comemorando; Tostão existindo; Bebeto, Romário e Mazinho ninando; Dois “Eu te amo!”. Momentos que vivi ou só vi. Mas senti. Gente brasileira, rica e pobre, sorrindo e chorando. Gritando alto, quebrando coisa, desiludida e feliz. Tudo isso me construiu uma ideia de ser brasileiro que eu não consigo explicar a não ser para os que, como eu, vivem dessa mesma maldição.
Copa do mundo é, pra mim, essa sensação clichê de ver uma parte considerável do mundo vibrando em uma mesma sintonia para talvez, entre as quatro linhas, reconstruir um novo ideal de mundo mesmo que apenas pelo momento de um gol. Parece tão pouco, né? Um gol. E ao mesmo tempo tão muito. Classifica um Marrocos, de cabeça. Tira um Brasil, de contra-ataque. A Copa é o capitalismo abusivo, tudo que vivemos aqui há oito anos naquele evento que escancarou feridas já abertas, ao mesmo tempo que se consagrava como uma das grandes Copas de todos os tempos. A gente esquece das dores sambando em cima delas, concretadas nos espaços das arenas onde antes nas gerais namorávamos nossos times e seleções sorrindo e esquecendo de tudo: a lotação, o mijo, as filas, o arrastão. Aquele cheiro de espetinho no estacionamento do Mineirão era foda. Ódio eterno ao futebol moderno? A gente se entrega. Na Copa do mundo, principalmente.
Eu nunca vou entender por que o Brasil tinha sete no campo de ataque contra a Croácia, ganhando e nos minutos finais. Nunca vou entender o pane do 7 a 1. Nunca vou entender a minha relação de amor e ódio ao Neymar. Assim, eu posso tentar entender. Posso falar de Bolsonaro, de “futebol de verdade”, da falta de meio-campo de qualidade, de tática, de frieza, de Tite, de tudo de que todos nós falamos em bares, grupos de zap, mesas-redondas e casas de amigos tentando entender o incompreensível: o amor ao futebol. Vi um vídeo recente de várias jogadas incríveis de craques em vários tempos e essas mesmas jogadas feitas pelo Pelé. É impossível não se sentir arrogante sabendo que o Pelé é nosso. Saber que no Pelé estão todos os jogadores do mundo. Saber que no Brasil nasceu um negro que se tornou rei do futebol. Às vezes, confesso, eu também sinto uma certa melancolia nisso. Uma tristeza. Algo que não sei bem explicar. Talvez seja um sentimento de fim de Carnaval que sempre chega.
Quando me pediram uma foto para ilustrar este texto, eu decidi tirar um frame do filme que dirigi, Marte um, que inspirou esse convite para que eu escreva aqui. O frame aparece no final do filme e, a princípio, parece só uma cena de passagem. Curiosamente, fizemos nas filmagens várias versões dessa imagem, e eu até pensei que poderia ser, em algum momento, o cartaz. Na cena, um quintal de periferia onde a família que estrela o filme mora. A gente consegue ver as plantas em vasos improvisados, o muro inacabado, a bananeira na casa do vizinho e vários outros detalhes inspiradores. Parece o Brasil. A protagonista dessa imagem é uma bola de futebol. Mas o que eu mais gosto no geral é da sombra da bola. É uma sombra, pela posição do Sol, distorcida. Me remete à presença do Sol, uma estrela muito gigante maior que todos nós. Me remete também a uma ideia de que sempre que existir luz vai também existir sombra. A derrota de um, a vitória de outro. A sombra nunca será perfeita ou igual à bola. A sombra existe porque a bola ofusca a luz do Sol. Falando assim, parece bobagem. Parece que estou falando sobre o futebol como alienação. Ou o futebol como salvação. Mas não é bem isso. Ou é tudo isso. Enfim. Talvez seja apenas mais uma daquelas coisas que a gente não consegue explicar.