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Pretos, brancos, dourados

O cantor Vitor Ramil compartilha suas lembranças das Copas do Mundo, as memórias da família e as emoções causadas pela seleção canarinho

Publicado em 12/12/2022

Atualizado às 08:37 de 10/05/2023

Durante a Copa do mundo do Catar 2022, o Itaú Cultural publica A Copa é nossa, uma série de textos em que artistas compartilham suas relações e memórias com o futebol e o torneio.

por Vitor Ramil

Nasci em 1962, ano de Copa do mundo e do bicampeonato do Brasil. Naquele momento, minha mãe era muito mais interessante que qualquer coisa, então perdi todos os jogos e a grande comemoração. Mas a partir de 1970 não perdi mais nenhuma Copa. Sempre pela televisão. A única que saiu um pouco do script foi a de 2006, na Alemanha. Não porque eu estivesse em Berlim para um show e tenha ido aos estádios ver tudo ao vivo. Não. No máximo assisti a um ou dois jogos em algum bar pela indefectível TV. Depois saí a viajar por outros países com a Ana Ruth, minha mulher.

Embora, como em 1962, eu tenha perdido quase tudo, vivi em 2006 uma das maiores emoções em Copas. Foi no dia da final. Eu e minha companheira desde os 18 anos estávamos em Veneza naquele inesquecível 9 de julho. Durante os 120 minutos de Itália x França, decidimos sair a caminhar pela cidade. De repente nos demos conta de que as ruas e os canais de Veneza estavam absolutamente desertos. O jogo deve ter sido emocionante, mas garanto que não foi nada comparado ao que vivemos. Veneza deserta, só para nós! Talvez tenha sido uma experiência única no mundo, porque não cruzamos com ninguém enquanto o jogo durou, nenhum turista, nenhum morador. Apenas nos chegavam sons de multidões invisíveis. Mas, sim, a emoção foi paralela à Copa e se deu, com licença, em outro século.

Se eu tivesse que eleger a Copa do mundo que mais me emocionou por si só, escolheria a de 1970. Não preciso dizer nada sobre aquele time lendário. Eu tinha 8 anos. As lembranças são vagas, algumas talvez inventadas. Mas são poderosas. E têm três cores: preto, branco e dourado. O dourado era dos detalhes na estrutura de metal da nossa televisão. O preto e o branco eram de suas imagens. Ainda não havia transmissão em cores no Brasil. Tínhamos uma grande e pesada Orbiphon e a dignidade de não cobrir o vidro abaulado de sua tela com plástico colorido.

Não preciso dizer nada também sobre a apropriação das cores da bandeira brasileira e da camisa canarinho pela extrema direita em anos recentes, tampouco justificar a náusea que a distorção de seu significado passou a me provocar. Graças a ela, cheguei a 2022 certo de que não conseguiria torcer pela seleção brasileira. Seria a primeira vez. O que antes representava coletividade, criatividade, genialidade ou alegria era agora sinônimo de individualismo, ignorância, crueldade e destruição, para ficar só nisso. Se me provocava tamanho mal-estar, que sentimentos a mundialmente célebre camiseta amarela não despertaria hoje em dia em seu criador, o amigo e admirado escritor, professor e desenhista Aldyr Garcia Schlee? Em 1953, aos 19 anos, ele realizara a façanha de criá-la para que o Brasil tirasse de cima o peso que a antiga camiseta branca ganhara após a derrota para o Uruguai no chamado Maracanazo, em 1950. Com o tempo, tornara-se crítico ferrenho do mercantilismo no futebol e dos desmandos na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), sem jamais disfarçar sua profunda desilusão com o mundo sombrio da bola, que, involuntariamente, sua criação solar passara a representar. Às vezes parecia querer tirar o peso da camisa canarinho de cima de si mesmo.

Seu biógrafo, Geraldo Hasse, em livro ainda inédito, conta que, durante a Copa de 1950, Schlee desenhava todos os gols que ouvia pela Rádio Sarandi, de Montevidéu, na narração de Carlos Solé. Segundo o biografado, aqueles desenhos o fizeram exercitar a imaginação com a qual engendraria seu mundo literário ficcional. Com o advento da televisão, e sua grande evolução tecnológica posterior, suponho que o Schlee tenha se acostumado a ver seu amarelo cada vez mais canarinho sobre gramados cada vez mais verdes em imagens cada vez mais reais que a realidade. Seu tempo acabou em 2018. Mas, se tivesse vivido uma prorrogação, como reagiria à surrealidade social e política de que a camiseta da seleção brasileira passou a ser um emblema? Acho que ele deixaria isso para depois. Antes de mais nada, reclamaria do juiz e das regras por ser obrigado a continuar em campo em tais circunstâncias. Depois, amava tanto o futebol que daria um jeito de acompanhar os jogos sem sofrer. Evitaria as ruas, isolando-se com sua amada Marlene no sítio que mantinham no Capão do Leão. Voltaria a sintonizar seu rádio a válvula nas ondas uruguaias? É possível. Sem dúvida, torceria pela Celeste, como fizera a vida inteira, embora o que mais temesse fosse ter de expor seu coração numa final entre Brasil e Uruguai.

Foi pensando nisso que tive a ideia de tentar localizar a nossa velha e igualmente valvulada Orbiphon, que minha mãe dera para Dona Riqueza, a senhora que lavava roupa para nossa família numerosa naquele tempo em que máquina de lavar era coisa dos Jetsons. Assim como o Schlee e seu rádio, minha imaginação tem uma dívida considerável com aquela TV. Se ela ainda funcionasse ou tivesse conserto, quem sabe eu conseguisse negociá-la de volta e torcer pela seleção com o entusiasmo com que torci em 1970. Poderia inclusive religá-la no mesmo canto da mesma sala daquela época, pois voltei do Rio de Janeiro, no começo dos anos 1990, para viver na casa da minha infância, em Pelotas. Tudo isso evitando as cores nauseantes da camisa canarinho. A emoção seria, mais uma vez, preta, branca e dourada.

A Orbiphon era forte como um cofre. Ainda existiria? A querida Dona Riqueza mais do que mereceu ganhá-la. Pelo menos o excêntrico controle remoto, talvez esquecido em um armário, terminou comigo e está em bom estado depois de quase 50 anos. Trata-se de um pequeno tijolo de plástico cujas funções se resumem a quatro botões, um retangular para troca dos canais e três outros giratórios: liga/desliga/brilho, volume e vertical (jovens, procurem no Google para entender do que se trata esse último). Liga-se à televisão por um cabo com 5 metros de comprimento e a grossura de um dedo. Resumindo, o controle é um trambolho. Entende-se que nunca estivesse à disposição. Por isso, e porque o único esporte coletivo da minha família era ir e vir do sofá até a TV para mexer em seus comandos, ele quase não era usado. Eu adorava ligá-lo às escondidas, ocultando seu cabo por trás dos móveis e sob as almofadas. Quando minhas irmãs se sentavam para assistir a algum programa, eu me divertia fazendo a imagem rodar a cada tanto ou baixando o volume lentamente, de modo a fazer com que elas se exercitassem na base do senta e levanta. Ambas devem a mim as pernas fortes que as fizeram brilhar no mundo do balé pelotense.

Em 1930, ano da primeira Copa do mundo, sediada e vencida pelo Uruguai, meu pai, uruguaio, tinha 9 anos. Minha mãe – filha de uruguaia, mas brasileira nascida na fronteira, em Jaguarão, terra natal também de Aldyr Schlee – tinha 4. O pai morreu em 1982, ano de Copa vencida pela seleção italiana, a mesma que me proporcionaria em 2006 as emoções venezianas. A mãe continua em campo. Neste ano completou 96. Na próxima Copa, em 2026, pretendemos comemorar seu centenário. E a Dona Riqueza, ainda estaria viva? Se não, a família continuaria a morar na mesma casa? Não me intimidei. Lembrava bem seu endereço, no bairro de Navegantes. Peguei o carro e me toquei para lá.

A casa continuava quase igual. A moradora agora era a filha da Dona Riqueza, simpática como a mãe, que falecera há alguns anos. Recebeu-me com certa incredulidade, mas, assim que se convenceu da sinceridade das minhas intenções, passou a achar a situação divertida e até romântica. “Sim”, disse ela, para minha surpresa, “a mãe guardou, mesmo quando comprou uma colorida. Não era de se desfazer das coisas. Depois que ela morreu, volta e meia tentei me livrar da TV, que ocupa espaço lá nos fundos, mas na última hora sempre desisti. Acho que agora sei por quê”, disse-me com uma boa risada. Não quis que eu pagasse nada, nem mesmo simbólico. Que eu a recebesse de volta como um presente da mãe dela. A riqueza de espírito era um traço familiar.

Levei a Orbiphon a um conhecido que arruma aparelhos antigos e já operou milagres com meu toca-discos (daqueles mono, Philips, cuja tampa é a caixa de som), meus rádios e gravadores. Ele riu quando viu o que eu trazia desta vez. Não me prometeu que a TV voltaria a funcionar. Caso voltasse, seria com adaptações que preferia não me explicar. Eu a receberia com um deprimente conversor externo para captar o sinal digital. “Se voltar a andar”, disse, “presta atenção, se, lamento informar, mas há o risco de a imagem ficar um pouco melhor do que era.” Todos estavam se divertindo bastante comigo.

O conserto demorou. Mas, uma hora antes da estreia do Brasil na Copa, o operador de milagres me ligou para dizer que a TV estava pronta e que eu podia buscá-la. Ao chegar à pequena eletrônica, que mais parecia um depósito de sucatas, logo vi a Orbiphon funcionando sobre o balcão como se estivesse sobre uma nuvem: sublime. “Posso viver sem chuvisco, sem corrigir a vertical ou a horizontal”, garanti ao meu amigo. “Acredito”, disse ele. “A questão é o quanto ela ainda pode viver.”

Entrei em casa correndo com a TV nos braços – mais precisamente, com as mãos enfiadas em parte dentro dela pelas aberturas laterais que existiam com essa finalidade. Quando não eram usadas, ficavam fechadas por tampas que se moviam verticalmente. Na travessia do corredor, lembrei de como era leve a nossa Smart Led 4K com controle inteligente. Coloquei a Orbiphon de novo em seu canto, sobre uma mesinha com tampo de fórmica quase tão antiga quanto ela, comprada num brique especialmente para a ocasião. O cabo do controle remoto já estava atravessado no chão da sala como um quebra-molas, à espera. Conectei sua flecha de nove pinos à entrada de nove furos às costas do aparelho. Aquilo estava mais para um ataque com chuva de flechas numa guerra medieval. Chamei a Ana para viver a experiência comigo. Quando entrou na sala, ela pareceu mais incrédula que a filha da Dona Riqueza. Seu riso, no entanto, foi de alegria. Ela não liga para Copa do mundo, mas gosta de velharias como eu. “Ainda não viste nada”, alertei. E dei a ela a honra de girar o liga/desliga do controle. Não ligou. “Deve ser o cabo”, eu disse. E apertei o botão branco na base do delicado gradil dourado que ia de cima a baixo ao lado direito do vidro da tela. Ouvimos, então, o som do apito inicial da partida sair de trás do gradil e vibramos mais que a torcida no estádio. Mas, sem que a imagem se formasse, a Orbiphon começou a fumegar. Fim de jogo.

“Não esquenta”, aconselhou-me a Ana. Sem maldade, coisa que ela não tem mesmo. E voltou para o seu escritório. Fiquei tão desapontado que me recostei no sofá e peguei no sono. Depois de um tempo, acordei e fui ao banheiro. Temos lá um rádio Lawrence, que é também porta-papel higiênico. Cedi à tentação de saber a quantas andava o jogo. O segundo tempo havia começado há pouco. De repente, gol do Richarlison. Desliguei o engenhoso aparato e fui até a Ana: “Gol do Brasil”, contei, puxando um tom blasé, “Richarlison”. “Ah, que bom”, ela comentou. “É aquele guri que criticou o uso da camiseta da seleção na política, que apoia causas sociais superimportantes, um cara consciente, comprometido, cheio de empatia, buena onda. Até recebeu um prêmio na Inglaterra por suas ações de benemerência. Que legal”. “Como sabes tudo isso?”, perguntei. “Li no jornal. Também tinha uma matéria sobre os golpistas, que, depois de mandar SOS para os alienígenas, estão agora conspirando contra a Copa.” Fiquei em silêncio. Então corri para a sala. Ela correu atrás. Liguei a Smart Led 4K, não sem antes procurar muito por seu controle inteligente, que estava socado embaixo de uma almofada. Sem esse controle, eu nem saberia ligar a TV, de tão cool que é o seu design. Play. Bastou aparecer a camisa canarinho sobre o gramado verde, e Richarlison fez seu segundo gol, um dos mais bonitos que já vi. Com que emoção o Schlee iria desenhá-lo! Eu e a Ana nos abraçamos e começamos a pular. Olhei para a velha Orbiphon e nos enxerguei refletidos no grosso vidro da tela, felizes. Pretos, brancos, dourados.

*Vitor Ramil é cantor, compositor e escritor. É autor dos álbuns Estrela, Estrela (1981), A paixão de V segundo ele próprio (1984), Tango (1987), À beça (1995), Ramilonga - A estética do frio (1997), Tambong (2000), Longes (2004), Satolep Sambatown (com Marcos Suzano - 2007), délibáb (CD+DVD - 2010), Foi no mês que vem (duplo - 2013) e Campos Neutrais (2017). Também é autor dos livros Pequod (1995), Satolep (2008), A primavera da pontuação (2014) e A estética do frio - Conferência de Genebra (2004).

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