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Todos os olhos de Lais Lage

Selecionada Rumos 2023-2024, Lais Lage busca aguçar outros sentidos além da visão para tratar de ancestralidade e memória

Publicado em 23/10/2024

Atualizado às 15:30 de 25/10/2024

por Cristiane Batista

Projeto: Ensaio sobre uma atriz que está ficando cega (Rumos 2023-2024)
Proponente: Lais Lage

“Sou uma pessoa afro-indígena PcD, com pele de cor amendoada, 1 metro e 56 de altura, olhos rasgadinhos, nariz imponente, sorriso largo e debochado, bissexual, candomblecista, filha de Márcia e Luiz, neta de Maria Vilani, Terezinha Maria, Jorge e Raimundo, irmã de Gláucia, tia de Giovana e de Gustavo. ‘Cria’ de Santa Cruz, bairro periférico localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde nasci, me criei e aprendi muito do que sou hoje”, autodescreve-se a atriz, professora, produtora, diretora e roteirista carioca Lais Lage, uma das idealizadoras da performance Ensaio sobre uma atriz que está ficando cega, que chega a seu segundo ato com o apoio do Rumos Itaú Cultural, edição 2023-2024.

Mulher afro-indígena, com pele de cor amendoada, está nua, de pé, atrás de um plástico transparente. Ela tem os cabelos crespos e escuros, na altura dos ombros. Suas duas mãos estão encostadas no plástico, com as palmas à mostra.
A carioca Lais Lage é atriz, professora, produtora, diretora e roteirista (imagem: Rodrigo Menezes)

 

Lais tem uma condição genética degenerativa em estado avançado chamada ceratocone, que a faz perder a visão de forma gradual. Essa, no entanto, é apenas mais uma das muitas características que a compõem, mas não a definem. “A ceratocone me desloca através do meu vocabulário, da minha percepção sobre mim e sobre o outro, e faz com que me relacione com a vida numa abrangência de sentidos. O teatro me dá a possibilidade de viver como pessoa, com potencial criativo de invenção de histórias, memórias, fluxos, afetos, acessos e modos de aprender o mundo”, afirma.

Em 2018, em cima do palco, ao terceiro sinal para entrar em cena, ela teve uma ruptura na membrana da córnea – quadro chamado de hidropsia –, o que a deixou cega do olho direito. Foi quando lhe veio à lembrança o romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, o último livro que leu sem o auxílio de lentes, quando ainda era adolescente. Publicada em 1995, a obra rendeu ao autor português o Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e foi adaptada para o cinema por Fernando Meirelles, em 2008.

O livro trata do processo de desumanização do mundo contemporâneo, no qual as pessoas, por não enxergarem o outro, criam uma sociedade individualista e em colapso moral. Ele começa com uma cena de trânsito. Quando o sinal verde abre, todos os carros avançam, mas um deles fica parado porque o motorista havia cegado subitamente. Cria-se, então, um universo ficcional em que há uma epidemia chamada de “cegueira branca”, quando as pessoas perdem o sentido da visão e enxergam apenas uma grande mancha branca, como num mar de leite. “Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”, diz o texto.

“Será que, se essa obra tivesse sido escrita por uma pessoa cega, que não fosse branca, que não fosse um homem hétero e cis, ela seria construída dessa maneira? Será que ‘ela está ficando cega’ é o termo que a gente deve usar para falar de uma pessoa que não está percebendo uma coisa, não está se dando conta? Será que, ao ficar cega, estaria eu perdendo a humanidade? Isso me parece um tanto capacitista, baseado em um padrão corponormativo que pressupõe que alguém é incapaz apenas pelo fato de possuir alguma deficiência”, provoca Lais.

Em seu projeto, chamado de Ensaio sobre uma atriz que está ficando cega, ela contrapõe esse olhar, convidando o público a repensar seus conceitos e preconceitos em uma ocupação performática multilinguagem que apresenta sua vida e as memórias coletivas de seu bairro, Santa Cruz, enquanto investiga temas como ancestralidade, memória, territorialidade, sexualidade, gênero e pertencimento sob o viés de um coletivo de artistas pretos, periféricos e PcD com experiências comuns a muitas pessoas.

Estrutura cor de rosa de pelúcia com uma mulher montada, como se estivesse em um cavalo. Ela usa calcinha preta e camiseta branca com barriga à mostra.
"Será que, ao ficar cega, estaria eu perdendo a humanidade?", provoca Lais Lage (imagem: Rodrigo Menezes)

 

A ideia não é que o público seja vendado e/ou vivencie o que é ser um corpo com deficiência, mas que seja convidado a mergulhar em suas próprias sensações/reações a estímulos disparados na ocupação, como coreografias, toques em texturas e a relação com um grupo de mediadores que, com um guia de previsibilidade, auxiliam no mapeamento do espaço, informam sobre a iluminação, o nível do som e a troca de cenas e cenários.

“Não é um espetáculo para ver, é uma imersão sensorial. A primeira coisa que fizemos foi negar essa construção cênica em que o resultado se explica a partir de uma relação com a visão direta. Trabalhamos com audiodescrição, mas ela é uma ação performática com a Lais, faz parte do texto, é um corpo-guia da peça”, explica Wallace Lino, uma das dramaturgas.

Para a produtora e idealizadora Carolina Caju, isso se dá também na escolha do formato do espaço: uma ocupação itinerante e imersiva, capaz de apresentar a acessibilidade como um recurso estético, e não como mero acessório. “Quando a gente idealizou o projeto, percebeu que seria muito difícil fazer com palco e plateia separados. Tudo é pensado por pessoas e para as pessoas, sejam elas cegas, surdas, com mobilidade reduzida, espectro autista ou não”, explica.

“Isso vai além de cumprir uma tabela, entrar em um edital e ter somente um dia de uma temporada com Libras, por exemplo. Todo sujeito tem necessidades múltiplas, e as acessibilidades são complexas. A gente não vai conseguir dar conta de suprir a necessidade de todas as pessoas, mas a gente pode ter um pensamento sobre isso e considerar o sujeito antes de tudo”, complementa Lais.

Bruma Machado, que também assina a dramaturgia, concorda: “Quando a gente pensa em acessibilidade, normalmente a associa a pessoas com deficiência, mas a realidade é que todos precisam de recursos de acessibilidade; a diversidade do corpo é infinitamente maior do que as equações de eficiência industrial e ergonomia de massa, que são baseadas num sujeito padrão que é uma parte ínfima da população mundial. Nossa vida não é estanque. A gente é parte de algumas partes, e o que se passa comigo não afeta só a mim, meu corpo não está sozinho no mundo. A acessibilidade é muito mais específica – ou seja, leva em consideração toda e qualquer especificidade – e ao mesmo tempo muito mais ampla, porque pode se aplicar a todos os corpos”. 

Olho de peixe

Desdobramento da monografia de Lais em teatro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Ensaio sobre uma atriz que está ficando cega estreou seu primeiro ato em julho deste ano no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, na Zona Sul da capital fluminense. Ao final dessa primeira experiência, o retorno do público chamou atenção de Bruma: “As pessoas saíam dizendo coisas como ‘sensacional’, ‘sexy’, ‘sensível’, e também que a performance era ‘não óbvia’. Qual seria a expectativa óbvia? Assistir ao sofrimento da pessoa que está ficando cega? Ou a uma história de superação, ao exemplo da força de uma pessoa com baixa visão em ser atriz? Ora, um corpo com deficiência também ri, faz chacota, tira onda, debocha, trabalha, cria, tem paixão, tesão e prazer”, reflete.

O segundo ato será realizado em Santa Cruz e deve aprofundar ainda mais a relação de Lais com o território, ocupado por sua família desde a década de 1950. Santa Cruz é o segundo bairro imperial do Rio de Janeiro e um dos mais populosos da cidade. Seu nome original era Piracema, que significa, na etnia Tupi-Guarani, “subida do peixe, o movimento que o peixe faz para ir contra o fluxo do rio em busca de um local tranquilo para se reproduzir”.

Mulher afro-indígena, com pele de cor amendoada, e estatura mediana aparece de pé, em cima de uma cadeira azul de plástico. Ela usa calcinha preta e uma camiseta branca com a barriga à mostra onde se lê em letras pretas Garota de Santa Cruz. Atrás dela há um ônibus nas cores azul, vermelho e amarelo onde se lê no letreiro também Santa Cruz.
No projeto apoiado pelo Rumos, Lais Lage convida o público a repensar seus preconceitos em uma ocupação performática multilinguagem que apresenta sua vida e as memórias coletivas de seu bairro, Santa Cruz (imagem: Rodrigo Menezes)

 

Com seu “cardume”, formado por Bem Medeiros, Bruma Machado, Carolina Caju e Wallace Lino, Lais aposta no compartilhamento de talentos, experiências e saberes para estimular um movimento de espelhamento e reconhecimento dos corpos que habitam esse território hoje, a fim de celebrar “os que estavam, os que chegaram e os que estão”.

“Queremos trazer outra perspectiva ao lugar, hoje estigmatizado pela violência, pela escassez e pela falta. O que percebemos é um lugar fértil, uma terra indígena habitada por pessoas pretas e sua sabedoria, a ‘IA, inteligência ancestral’. Meu conhecimento vem antes, durante e depois do meio acadêmico. Ele considera as dores e alegrias dos quintais dessas famílias como fonte de sabedoria, que pode ser traduzida em um churrasco com cerveja, música alta e muita gargalhada, por exemplo”, conta.

Mulher afro-indígena, com pele de cor amendoada, está sentada, nua, sorrindo. Suas pernas estão abertas e entre elas há um objeto redondo e branco que ela segura com as duas mãos. Seus braços estão na frente dos seios. Seus cabelos crespos e escuros estão molhados e penteados para trás.
"O teatro me dá a possibilidade de viver como pessoa, com potencial criativo de invenção de histórias", afirma Lais Lage (imagem: Rodrigo Menezes)

 

O resultado dessa experiência poderá ser conferido no 1o semestre de 2025 e, segundo Carolina, outros atos devem acontecer: “A ideia é que cada ocupação tenha uma perspectiva nova a partir do território em que ela está inserida, a circulação não de uma obra fechada, mas de um projeto que vai se modificando de acordo com o espaço e as pessoas”.

 

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