Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

“Palhaço frustrado”, Ariano Suassuna dizia que gostava de rir e de fazer rir

Nos 10 anos de sua morte, as aulas-espetáculo do dramaturgo paraibano registram milhões de visualizações no YouTube

Publicado em 23/07/2024

Atualizado às 11:51 de 23/07/2024

O dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) nunca saiu do Brasil. E não foi por falta de vontade. Se pudesse, teria ido a Portugal – “o único país da Europa que tem o bom senso de falar português”. Só não foi porque Portugal fica na Europa. “Se ficasse em Alagoas, teria ido”, completava, brincalhão. Ariano não gostava de viajar. De carro, ônibus ou avião. “Na estrada, você tem um buraco aqui, outro ali. No céu, não; onde quer que você vá, o buraco vai embaixo”, queixava-se. Certa ocasião, entrou em um avião, sentou-se em sua poltrona e quase desmaiou ao ler: “Para flutuar, use o assento”. Indignado, chamou a comissária de bordo: “Não vim aqui para nadar, não. Vim aqui para voar”. Em seguida, reclinou a poltrona para tirar um cochilo. Deu de cara com outro aviso agourento: “Bolsa para sobrevivência na selva”. “Só existem dois tipos de viagem de avião: as tediosas e as fatais”, classificava, gaiato. “Viajar de avião é tão ruim que a gente reza para a viagem ser tediosa”. 

Se Ariano Suassuna nunca colocou os pés fora do Brasil, o mesmo não se pode dizer de seus personagens. Dois dos mais famosos, João Grilo e Chicó, já percorreram os quatro cantos da Europa. Sua obra mais famosa já foi adaptada, entre outros idiomas, para o inglês, espanhol, italiano, francês, alemão, holandês e polonês. Ariano escreveu O Auto da Compadecida (1955) a partir de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918); A história do cavalo que defecava dinheiro, obra anônima registrada por Leonardo Mota (1891-1948); e O castigo da soberba (1953), do próprio Ariano. Já Chicó foi inspirado em um Chicó de verdade, que ele conheceu em Taperoá, a 216 quilômetros de João Pessoa. “Gosto muito de mentiroso, doido e palhaço”, dizia. “Há mentira com asas e mentira com chifres. Não gosto do mentiroso que mente para prejudicar os outros. Gosto do mentiroso que mente por amor à arte de mentir”. 

Entre outras histórias, Ariano Suassuna gostava de repetir a de um velho amigo dramaturgo que, um dia, decidiu visitá-lo em sua casa quando ainda estava escrevendo, lá no comecinho dos anos 1950, sua peça de maior êxito. “A história se passa onde?”, quis saber a visita. “No sertão da Paraíba”, respondeu o anfitrião, sentado à frente da máquina de escrever. “Tem seca?”, perguntou um. “Tem!”, respondeu o outro. “E cangaceiro, tem?”, tornou a perguntar um. “Também tem!”, voltou a responder o outro. “Rapaz, ninguém aguenta mais isso não!”, decretou o visitante, balançando a cabeça com ar de reprovação. “Azar o meu!”, deu de ombros o dono da casa. Não satisfeito, o inconveniente prosseguiu o interrogatório: “Como é o nome dos personagens principais?”. “João Grilo e Chicó”, respondeu Ariano, já demonstrando impaciência. “E como vão traduzir isso no exterior?”, voltou a perguntar o indesejado. Ariano perdeu as estribeiras: “Eu sei lá, rapaz, como vão traduzir isso no exterior! Sou um escritor brasileiro. Eu escrevo para o meu povo!”. 

“Divido a humanidade em duas categorias: os que concordam comigo e os equivocados”

Em quase 70 anos, “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”, como diria o crítico Sábato Magaldi (1927-2016) em 1962, já foi adaptado para o cinema e para a TV. Nos palcos, a história de João Grilo e Chicó foi encenada pelo menos seis vezes: quatro no Brasil e duas no exterior. Por aqui, encantou plateias de Pernambuco, em 1956; do Rio de Janeiro, em 1975; da Paraíba, em 1976; e de Santa Catarina, em 1999. Lá fora, da França, em 1971; e do Paraguai, em 1999. No cinema, arrancou gargalhadas em duas adaptações: A Compadecida (1969), de George Jonas (1935-2016); e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), de Roberto Farias (1938-2018). Os atores Armando Bogus (1930-1993) e Antônio Fagundes interpretaram João Grilo e Chicó na primeira versão e os humoristas Renato Aragão e Dedé Santana, o Didi e o Dedé do quarteto mais famoso do Brasil, na segunda. Na TV, O Auto da Compadecida virou microssérie em quatro episódios, escrita por Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão e dirigida por Guel Arraes. A dupla foi interpretada por Matheus Nachtergaele e Selton Mello. 

Guel conta que conheceu Ariano ainda menino, no Recife. Seu pai, Miguel Arraes (1916-2005), era vizinho de porta de Ariano. Já adulto, tomou coragem e disse: “Um dia, gostaria de adaptar O Auto da Compadecida”. Na mesma hora, o dramaturgo prometeu: “Vou guardar para você!”. Dez anos depois, Guel perguntou se poderia pegar emprestado temas de outras obras, como Torturas de um coração (1950) e O santo e a porca (1955), também de Ariano. “Faça como quiser”, concordou. “No primeiro dia, Ariano assistiu ao episódio no quarto. No segundo, foi para sala. No terceiro, chamou os amigos…”, recorda o diretor. O Auto da Compadecida (1999) fez tanto sucesso que, em 2000, foi adaptada para o cinema e, 25 anos depois, ganhou continuação, O Auto da Compadecida 2, que estreia em 25 de dezembro. “Ariano rompeu com o estereótipo do nordestino triste ou do sertanejo sofrido. A lembrança mais forte é a de um engraçadíssimo contador de histórias”, explica Guel Arraes. 

“Todo dia eu invento um sonho diferente para sonhar”

Muitas dessas histórias foram contadas e recontadas nas aulas-espetáculo que dava pelo Brasil afora e, dez anos depois de sua morte, ainda fazem sucesso no YouTube. Como a vez em que quase voltou da porta de um colégio no Recife ao se deparar com a palavra “aula-show” em uma faixa de boas-vindas. “Não dou aula-show. Dou aula-espetáculo. Xô, na minha terra, é interjeição de espantar galinha!”, explicou. Noutra ocasião, admitiu que só se tornou advogado por falta de opção. “No meu tempo, se o sujeito soubesse fazer conta de somar, seria engenheiro. Se gostasse de abrir barriga de lagartixa, seria médico. Como eu não sabia fazer nem uma coisa nem outra, me formei advogado”, divertia-se. Mas, a passagem mais famosa é a da banda Calypso, formada pela cantora Joelma e o músico Ximbinha. Ariano ficou indignado ao ler, em uma matéria do jornal Folha de S. Paulo, que o guitarrista era “genial”. “Se eu gasto um adjetivo desses com o Ximbinha, o que vou dizer do Beethoven? Vou ter que inventar outra palavra!”.  

Apaixonado pela cultura popular brasileira, Ariano Suassuna não economizava críticas ao que chamava de “lixo cultural”, como rock, funk ou punk. Quando adaptou O Auto da Compadecida, Guel Arraes sabia, por exemplo, que não poderia usar guitarra elétrica em sua trilha sonora. Em suas aulas-espetáculo, sobrava para todo mundo: Michael Jackson, Mickey Mouse, The Rolling Stones... Ironizava até os nomes americanizados. Certa noite, terminada uma aula-espetáculo, algumas pessoas fizeram fila para pedir autógrafo e tirar fotografia. “Qual é o seu nome?”, perguntou Ariano. “Wheydja”, respondeu uma moça. “Como se soletra?”, indagou o autor. E ela soletrou. Em seguida, veio outra. “E o seu?”, voltou a perguntar. “Whemytt”, respondeu. “Você é irmã da Wheydja?”, quis saber o autor, entre o curioso e o brincalhão. “Ué, como o senhor adivinhou?”, espantou-se a jovem. Na sequência, um rapaz, de livro na mão, se apresentou: “Meu nome é Hugo. H-u-g-o!”, soletrou. “Esse daí, coitado, deve achar que eu sou analfabeto!”, gracejou Ariano, para si mesmo. 

A jornalista Adriana Victor assistiu a dezenas de aulas-espetáculo de Ariano Suassuna. Uma delas dentro de um presídio feminino. Outra no meio da rua. “Belém de São Francisco não tinha teatro. A cidade parou para assistir à aula de um senhor de mais de 80 anos à beira do rio”, recorda Adriana que conheceu Ariano na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde ela estudava Jornalismo e ele lecionava estética. Anos depois, já formada, pediu emprego ao então secretário de cultura de Pernambuco. Adriana trabalhou como assessora de Ariano de 1995 a 1998, no governo Miguel Arraes, e de 2007 a 2014, no governo Eduardo Campos. “Ariano Suassuna era movido a sonhos. Costumava dizer: ‘O que seria do homem se não tivesse um sonho para levá-lo adiante?’”, relata a autora do livro Ariano Suassuna – um perfil biográfico (Jorge Zahar, 2007), em parceria com Juliana Lins.

Ariano Suassuna não é autor de um livro só. Além de O Auto da Compadecida, assinou incontáveis obras, como Uma mulher vestida de Sol (1947), O santo e a porca (1955) e Romance d’A pedra do reino e O príncipe do sangue do vai-e-volta (1971). O diretor Luiz Fernando Carvalho adaptou três delas para a TV Globo: Uma mulher vestida de Sol (1994), A farsa da boa preguiça (1995) e A pedra do reino (2007). “Ariano se autodefiniu, ao longo de sua vida e obra, como um escritor barroco”, explica Bráulio Tavares, roteirista de A farsa da boa preguiça e A pedra do reino e autor de ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007) que viu Ariano pela primeira vez em uma aula da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde estudou Ciências Sociais, no Teatro Municipal de Campina Grande. “Trazia dentro de si contradições quase inconciliáveis. Isso lhe possibilitou criar uma obra que serve de interface entre o popular e o erudito, o rural e o urbano, o tradicional e o moderno”. 

“Não sou otimista nem pessimista. O otimista é ingênuo e o pessimista, amargo. Sou realista esperançoso”

Nascido no dia 16 de junho de 1927, Ariano Vilar Suassuna era o oitavo de nove filhos de João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar. Quem vê o escritor rindo e fazendo rir com o “palhaço frustrado” que trazia dentro de si não imagina a infância triste que teve. Aos três anos, seu pai, então deputado federal, foi assassinado a tiros por um pistoleiro, Miguel Alves de Souza, no Rio de Janeiro. Aos cinco, sua família perdeu quase todo o gado da fazenda Acahuan, no município de Sousa, a 432 quilômetros de João Pessoa, por causa da seca. “Minha mãe ficou viúva aos 34 anos”, relata ao Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles (IMS), de 2000. “Se quisesse dar um desgosto à minha mãe, era só chegar perto dela se lamuriando da vida”. Para nenhum dos filhos querer se vingar da morte do pai, Rita de Cássia dizia que o matador tinha morrido. Ariano só descobriu que o assassino de seu pai estava vivo perto de completar 50 anos. 

Do pai, Ariano herdou a biblioteca. Foi lá, ainda garoto, que descobriu, entre outros clássicos da literatura universal, Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas (1802-1870), e Scaramouche (1921), de Rafael Sabatini (1875-1950). “Na infância, tive dois encantamentos: a literatura e o circo”, repetia. “Quando perguntam se tenho o hábito da leitura, respondo que não: tenho paixão! Quanto ao circo, bastava alguém dizer que o circo chegou na cidade que o meu mundo já ficava melhor”. Em 1957, aos 30 anos, se casou com Zélia de Andrade Lima. O casal teve seis filhos e quinze netos. “A impressão que tenho é que, depois que conheci a Zélia, minha alma se desatou”, explica no livro ABC de Ariano Suassuna, de Bráulio Tavares. “Minha alma vivia trancada com um nó cego e ela desatou esse nó”. Dois anos depois, comprou, com os direitos autorais de seus livros, um casarão no bairro da Casa Forte, no Recife, onde viveu até o último dia de sua vida.

 “O ser humano só tem duas saídas para enfrentar o trágico da existência: o sonho e o riso”

Ariano Suassuna foi eleito para a Academia Brasileira de Letras no dia 3 de agosto de 1989 e tomou posse no dia 9 de agosto de 1990. Às vésperas da eleição, recebeu um telefonema do então presidente da ABL, Marcos Vilaça, avisando que nenhum outro escritor se dispusera a participar da disputa pela cadeira 32, que pertencia a Genolino Amado (1902-1989): “Você vai ser candidato único. Uma eleição tranquila”, garantiu o acadêmico. “E você acha isso bom? E se eu perder para ninguém? E se eu não atingir o quórum?”, rebateu Ariano, preocupado. “Minha família é ruim de urna. Desde 1930, ninguém vence uma eleição”, fez graça. Curiosamente, Ariano venceu mais duas: em 1993, para a cadeira 18 da Academia Pernambucana de Letras e, em 2000, para a cadeira 35 na Academia Paraibana de Letras. “Se, ao publicar o livro, eu tiver êxito junto ao público, tanto melhor. Mas, o fundamental é o ato de escrever”, afirmou, em 2000. “A literatura é a minha festa. É ali que eu toco e danço”. 

“O Ariano dramaturgo é, a meu ver, tão genial quanto o poeta ou o prosador. Isso é algo raro de acontecer”, avalia o escritor Carlos Newton Júnior, responsável pelo lançamento de diversos títulos do autor, como A história do amor de Fernando e Isaura (2019), A pensão de Dona Berta e outras histórias para jovens (2021) e O desertor de princesa (2022), todos pela Editora Nova Fronteira. “Há autores que são excelentes no romance, por exemplo, mas, ao enveredarem por outros gêneros, não conseguem atingir a mesma qualidade. Sua obra aborda temas universais e supratemporais, vistos, porém, sob uma ótica local. Por isso, não envelhece nunca”. 

Ariano Suassuna morreu no dia 23 de julho de 2014, aos 87 anos, vítima de uma parada cardíaca. Estava internado em um hospital da capital pernambucana depois de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) dois dias antes. João Suassuna é um dos 15 netos do escritor. O mais velho deles. Os dois estiveram juntos na tarde do dia 21, uma segunda-feira. “Naquele dia, almoçamos juntos. E, como de costume, conversamos demais. Meu avô era muito brincalhão e comunicativo”, recorda João, que gostava de assistir aos jogos do Sport Club do Recife na Ilha do Retiro, em companhia do avô. “Terminado o almoço, ele me deu um abraço e pediu: ‘Meu filho, se puder, volte à noite para a gente terminar nossa conversa’. À noite, eu voltei, mas cheguei atrasado e não encontrei mais meu avô em casa. Ele tinha passado mal no jantar e levado às pressas para o hospital. Dois dias depois, se encantou. Os gigantes não morrem, eles se encantam”.  

Compartilhe