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Lélia Gonzalez: um símbolo da luta feminista e antirracista brasileira

Filósofa mineira ganhou elogios até de Angela Davis: “Aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo”

Publicado em 23/07/2024

Atualizado às 10:38 de 23/08/2024

por André Bernardo

Rio de Janeiro, 1976. A atriz e cantora Zezé Motta lia o jornal quando se deparou com uma notícia que mudaria sua vida: a antropóloga Lélia Gonzalez daria um curso sobre cultura negra, o primeiro do Brasil, na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage. Não pensou duas vezes. No mesmo dia, ela fez sua inscrição. Naquela época, se alguém dissesse que seu cabelo era ruim, sua bunda era grande ou seu nariz era feio, a protagonista de Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, acreditava. Logo na aula inaugural, Lélia disse uma frase que marcou Zezé: “Não há mais tempo para lamúria. Temos que arregaçar as mangas e virar esse jogo”. E foi o que ela fez: virou o jogo. “Se não tivesse feito aquele curso, teria outra história para contar sobre minha vida, carreira e militância”, relata Zezé, hoje com 80 anos. “Eu me tornei uma militante do movimento negro em tempo integral”.

Zezé Motta não foi a primeira e, certamente, não será a última mulher negra a ter sua vida transformada por Lélia. A historiadora Melina de Lima tinha apenas oito anos quando Lélia morreu, vítima de infarto, no dia 10 de julho de 1994. Ou, como ela prefere dizer, “quando vó Lélia partiu para o Orum”, numa referência ao mundo espiritual da cultura iorubá. Das lembranças que guarda da avó, uma se destaca: as visitas a sua casa no bairro de Santa Teresa, no Centro do Rio. “Havia, em seu escritório, uma estante, cheia de livros, que ia do teto ao chão. Ela dava, para mim e meu irmão, uma folha em branco e giz de cera. Imagina: enquanto ela escrevia algo genial, estávamos lá, despertando nossa criatividade”, relata sua neta, hoje diretora de Cultura e Educação do Instituto Memorial Lélia Gonzalez (IMELG), inaugurado no dia 1º de fevereiro de 2023, data de aniversário de Lélia.

Foto de Lélia Gonzalez sorrindo, usando uma faixa na cabeça de cores amarela e preta e camisa amarela.
Lélia Gonzales (imagem: Luiz Duailibe Valdo Costa/Angelo Sá | Acervo Lélia Gonzales - IMELG)

Melina só se deu conta de que era neta de uma das maiores intelectuais brasileiras na adolescência. Mesmo assim, só se aprofundou nos estudos sobre Lélia Gonzalez algum tempo depois, quando completou 20 anos. “Houve um momento de insegurança. Tinha medo de comparações. Não me sentia segura para tocar esse legado”, confessa. Tudo começou a mudar quando fez parte do Projeto Memória Lélia Gonzalez – O Feminismo Negro no Palco da História, da Fundação Banco do Brasil. “É um orgulho sem tamanho saber que essa pessoa que teorizou a luta feminista e antirracista, esse ícone urgente e necessário, é minha avó. Então, aos poucos, fui aprendendo a tocar essa feliz missão. Uma missão que, aliás, muito me orgulha”. Hoje, a “feliz missão” de Melina de Lima é dar a Lélia Gonzalez o reconhecimento que ela tanto merece. “Quero colocar Lélia na boca do povo”, garante.

Nosso português não é o português de Portugal, é o ‘pretuguês’

Projetos para “colocar Lélia na boca do povo”, no mês em que sua morte completa 30 anos, não faltam. O primeiro deles é o relançamento de Festas Populares do Brasil (Boitempo). Em 1987, quando foi publicado, teve tiragem limitada de três mil exemplares. Distribuído como brinde para os executivos de uma multinacional, não chegou às livrarias. Nele, a autora analisa as principais festas do país, como Carnaval, Quaresma e Festas Juninas. “Lélia se destacou como pensadora em um país onde mulheres negras dificilmente conseguem desenvolver um trabalho intelectual”, analisa a historiadora Raquel Barreto, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e curadora-chefe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), que assina o prefácio. “Foi uma pensadora que soube conciliar ação política, reflexão acadêmica e preocupação social. Era muito atuante no movimento negro e, por causa desse engajamento, teve seu pensamento considerado de menor importância”.

Fotografia em preto e branco de Lélia Gonzales. Ela está com os braços apoiados em uma mesa e sorri para a câmera.
Lélia Gonzales em Cosme Velho (RJ), 1977 (imagem: Acervo Lélia Gonzales - IMELG)

Para entender a importância de Lélia há, pelo menos, mais dois livros: Por Um Feminismo Afro-Latino-Americano (Zahar, 2020), organizado por Flávia Rios e Márcia Lima, e Lélia Gonzalez (Mostarda, 2023), escrito por Flávia Martins de Carvalho e ilustrado por Leonardo Malavazzi. O primeiro reúne ensaios, intervenções e diálogos, de 1975 a 1994. Estão lá, entre outros, a carta que Lélia escreveu para o Chacrinha, Alô, alô, Velho Guerreiro! Aquele Abraço!, entre 1979 e 1981, e a entrevista que concedeu ao Pasquim, em 1986. “O pensamento de Lélia era interseccional. Não explicou as desigualdades sociais brasileiras apenas pelo fator classe, raça ou gênero. E, sim, a partir de perspectivas multidimensionais. Para ela, classe, raça e gênero são fatores que se inter-relacionam”, explica a socióloga Flávia Rios, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Dos 43 textos que compõem o livro, Flávia Rios aponta o ensaio Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, de 1983, como o seu favorito. Não por acaso, foi o primeiro texto de Lélia que ela leu. “Identifiquei ali uma autora crítica aos grandes intérpretes brasileiros, como Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Caio Prado Júnior (1907-1990). Logo, questionei: ‘Por que uma pensadora dessas não está na academia?’”. Autora da primeira biografia de Lélia Gonzalez, escrita em parceria com Alex Ratts, Rios destaca a originalidade de sua biografada – não só do seu pensamento, mas, também, de sua escrita. “Ela escreve como quem fala”, sublinha. Entre outras proezas, Lélia criou o termo “pretuguês”. “A cultura brasileira é a cultura negra por excelência. Até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português, é ‘pretuguês’”, explicou a própria Lélia em entrevista ao Patrulhas Ideológicas, em 1980. Além de Festas Populares do Brasil, Lélia publicou também Lugar de Negro (1982), escrito a quatro mãos com Carlos Hasenbalg (1942-2014).

O outro livro é voltado para o público infantojuvenil. Faz parte da coleção Black Power, que abrange, entre outras personalidades negras, a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a jornalista Glória Maria (1949-2023) e a filósofa Sueli Carneiro. No volume dedicado à Lélia Gonzalez, Flávia Martins de Carvalho se debruça sobre sua vida, desde o nascimento no dia 1º de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte, até a morte, em 10 de julho de 1994, no Rio de Janeiro. “Cursei duas faculdades, Direito e Comunicação Social, e a Lélia não fez parte do currículo de nenhuma delas. Espero que as minhas obras ajudem a suprir esse déficit para que as futuras gerações possam se beneficiar dos conhecimentos dessa grande pensadora ainda durante seus cursos de formação para que tenham condições de construir um futuro melhor”, afirma Flávia Martins de Carvalho, juíza de direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) e doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

Quando descobriram que nos casamos, me chamaram de preta suja

Lélia Gonzalez nasceu Lélia de Almeida. Filha de um operário negro, Acácio Joaquim, e uma índia analfabeta, Urcinda Serafim, teve 17 irmãos. Um deles, Jaime de Almeida (1920-1973), se destacou como jogador e foi contratado pelo Flamengo. Aos sete anos, Lélia se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Sua mãe arranjou trabalho como doméstica na casa de uma família italiana. No Rio, Lélia cursou o ginásio na Escola Técnica Rivadávia Corrêa e o científico no Colégio Pedro II. “A única saída que eu encontrei foi ser a primeira da turma. É aquela história: ‘Ela é pretinha, mas é inteligente’”, ironizou Lélia em entrevista ao Pasquim. Em 1958, Lélia se formou em História e Geografia, pela Universidade Nacional da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e, em 1964, em Filosofia, pela mesma instituição. Participou, ainda, da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e ingressou no doutorado em Antropologia na Universidade de São Paulo (USP).

Lélia se casou duas vezes: a primeira, em 1964, com Luiz Carlos Gonzalez, um homem branco de origem espanhola, que ela conheceu na universidade. A família do rapaz tolerava o namoro, mas, não aceitou o casamento. “Quando eu disse que havíamos nos casado, passei a ser vista como safada, prostituta, sem-vergonha…”, recorda Lélia, na mesma entrevista ao Pasquim. “As relações com a família dele eram muito complicadas. Tão complicadas que ele acabou se matando”. O segundo casamento foi em 1969, com Vicente Marota, filho de pai branco e mãe negra. “Ficamos juntos durante cinco anos. Era engraçado porque, enquanto eu estava em busca de mim mesma, ele procurava fugir de si próprio. Apesar de a gente se gostar muito, nossa relação não estava combinando”, afirma. Lélia deixou um filho: Rubens Rufino, hoje diretor do Instituto Memorial Lélia Gonzalez (IMELG).

Fotografia de Lélia Gonzales. ela usa umóculos escuros de aramação azul e vestido azul.
Lélia Gonzales em Dacar, Senegal, 1979 (imagem: Acervo Lélia Gonzales - IMELG)

O lançamento de Festas Populares no Brasil é acompanhado por uma exposição em São Paulo: Lélia em Nós: Festas Populares e Amefricanidade foi inaugurada no dia 27 de junho no Sesc Vila Mariana e segue até 24 de novembro. Outra exposição comemorativa é Projeto Lélia Gonzalez: Caminhos e Reflexões Antirracistas e Antissexistas. De Belo Horizonte, onde fica no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) até 2 de setembro, a mostra segue para São Luís, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belém e Brasília. “Se eu consegui fazer mestrado numa universidade federal com uma bolsa de estudo sobre duas intelectuais negras, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, foi graças a Lélia”, orgulha-se Juliana Bartholomeu, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Até Lélia, nós, pessoas negras, éramos vistas como números dentro da academia. Não passávamos de estatísticas. Temos que reivindicar, a todo instante, nosso lugar na intelectualidade. A academia insiste em não reconhecer corpos negros como produtores de conhecimento. O legado de Lélia não pode ser esquecido. Jamais”. Axé, Lélia Gonzalez!

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