Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Contingência da ironia

Sobre a construção das nossas subjetividades e dos diálogos entre nós

Publicado em 11/10/2024

Atualizado às 17:57 de 14/10/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

“Assim como a filosofia começa com a dúvida, também uma vida que pode ser considerada humana começa com a ironia.” 

– Soren Kierkegaard

A ironia é algo tão delicado que, por vezes, a notificação "estou sendo irônico" antecipa a necessidade de um pedido de "caridade interpretativa" diante de uma descrição que pode ser considerada inadequada, maldosa, reducionista ou caricatural. A advertência não deixa de funcionar com uma dupla ironia em relação aos que seriam incapazes de compreender o que é dito sem essa explicação; por isso mesmo, soa como arrogância. O embaralhamento de ironia e arrogância não é algo trivial e nem chega a ser uma novidade: o filósofo grego Sócrates foi descrito pelo comediante Aristófanes como alguém arrogante, enquanto seu discípulo Platão tomou sua postura como irônica (em contraste com a arrogância dos que se considerariam possuidores da sabedoria). Sendo Sócrates a máscara inevitável dos que tomam a filosofia como modo de vida, tratar da distinção entre ironia e arrogância é problematizar a atuação de quem se coloca como intelectual. Neste texto quero descrever a proposta de Richard Rorty sobre a atuação do intelectual e como essa foi recontextualizada e aperfeiçoada no Brasil por Luiz Eduardo Soares. 

Existe uma modalidade de esporte na filosofia e nas humanidades de modo geral que consiste em criticar Richard Rorty. O legal desse "jogo" é que tem ganhos garantidos e você nem precisa dar-se ao trabalho de lê-lo. Se estiver diante de uma plateia formada na tradição da filosofia continental, pode chamá-lo de analítico; se estiver junto com analíticos, pode chamá-lo de desertor da seriedade em favor da "literatice" do palavrório continental*; e, na dúvida, pode simplesmente defini-lo como um pragmatista individualista burguês pós-moderno. Mas nunca se esqueça: chame-o de relativista ou de cínico nacionalista (e, a partir da repercussão dessa alcunha, arremate sentenciando que "filosofia norte-americana" é um oxímoro). O resultado é certo: ele é o causador da decadência moral, corruptor da juventude e detrator da própria atividade da Filosofia (com letra maiúscula). O mais legal é que ao repetir essa caricatura você pode também dizer que está fazendo somente o que o próprio Rorty propõe que seja feito: usando de ironia e redescrevendo suas posições em seus próprios termos. 

No controverso livro Contingência, ironia e solidariedade, de 1989, Rorty tentou propor uma descrição do que poderia ser a atividade intelectual se deixássemos de lado os apelos intelectualistas platônicos de que a filosofia forneceria um acesso privilegiado a uma “verdade redentora” ou a uma teoria que mostra a “realidade como ela é”, o que acaba com a necessidade de diálogo/conversação. Mas se a tradição Platão-Kant (este último através da fundamentação epistemológica) pede a conversão na busca do sublime não discursivo e/ou da beleza racional (na maior parte das vezes, numa mistura deliberadamente confusa desse duplo alvo). Rorty acredita que deveríamos evitar as metáforas visuais e nos concentrarmos na própria linguagem, no vocabulário que adotamos, nas descrições que incorporamos e que moldam a nós mesmos. Por isso, considera que a intelectual de sua utopia deveria ser ironista, ou seja, alguém que “tem consciência” da contingência da linguagem e do que ela mesma considera como seu centro de gravidade narrativa, seu “eu”. Se nossas crenças se constituem a partir da incorporação de vocabulários e, aceitando que não existe um “vocabulário dos vocabulários” (não contextualizável, neutro e isento), que não existe um vocabulário privilegiado que espelhe as próprias coisas em si mesmas, podemos distinguir aqueles que ajudam em nossos projetos de autocriação e aqueles que servem para a busca do consenso político. Ora, a perspectiva tradicional da filosofia toma a “teoria” como sendo capaz de fundir o público e o privado, dando uma única e mesma resposta (na forma de um livro/teoria/vocabulário final) sobre como deveríamos buscar tanto a autocriação individual, como a justiça social. Para Rorty o intelectual público deveria ser ironista e ao mesmo tempo ter a preocupação constante de não ser cruel, de não provocar dor. De modo idiossincrático, essa característica de cuidado para não gerar dor ou contribuir para o sofrimento de outros seres é o que o filósofo norte-americano chama de ser liberal. A ironia é sempre parasitária de um discurso dado e tende a descrever as pessoas não em seus próprios termos, mas problematizar aquilo mesmo que elas arrogam saber ou pensam ser. A maldade desse tipo de ironia deveria ficar restrita ao contexto de autocriação, tendo função terapêutica de nos colocar em questão. Na busca do consenso político, a ironia está em não se colocar como o portador da verdade ou de um vocabulário final que poderia acabar com a conversa. Essa posição é frágil, já que os metafísicos se colocam no palco público com suas teorias que representam a verdade, enquanto as ironistas liberais (não por acaso, Rorty descreve seu modelo de intelectual no feminino) poderiam somente oferecer redescrições que problematizam os discursos vigentes e nos direcionam para a busca de novas crenças e práticas.

O livro de Rorty é politicamente datado em muitas de suas posições e na sua indulgência em relação ao american way of life, num momento em que alguns falavam de fim da História e de uma nova ordem mundial. Mas o principal problema é desconsiderar que a contingência atinge a própria “ironia” e repercute nos horizontes de solidariedade possível. (Talvez por isso em 2000 os teóricos políticos Judith Butler, Ernesto Laclau e Slavoj Žižek ao montarem uma coletânea de diálogos da esquerda contemporânea lhe deram o nome de Contingência, hegemonia e universalidade). Rorty pressupõe que a maior parte das pessoas permaneceria metafísica e representacionista, e a condição de ironista seria uma diferença cultivada entre os intelectuais a partir do acúmulo de leituras e da imaginação literária. Mas e se a sociedade como um todo se torna ironista? E se os ironistas vão para o espaço público sem o compromisso de construir consenso e muito menos de tentar não ser cruéis? Um colega, por volta de 2010, defendeu uma dissertação sobre a descrição da ironista liberal e, na avaliação da banca pós-defesa no contexto de boteco da zona norte do Rio de Janeiro, surgiu a conclusão: o problema é que na Tijuca todos são ironistas e ninguém é liberal. 

A descrição da ironista liberal foi um engodo por tentar reificar algo que deveria ser uma forma de resistir à reificação e por dramatizar de forma drástica aquilo que se mantém e aquilo que se modifica no cotidiano (o autor afirma ter sido seduzido pela descrição da epifania de Antoine Roquentin no romance A náusea, de Jean-Paul Sartre, que mostrava a desconexão e arbitrariedade da relação entre palavras e coisas). A descrição de Rorty seduziu outras pessoas, como Zygmunt Bauman, que, dentro de seu próprio projeto intelectual, tomou de Rorty a descrição da contingência e lhe deu o nome de liquidez. Já o escritor David Foster Wallace avaliava que a ironia tomava a cultura popular de ponta a ponta, sendo o moto contínuo do discurso da televisão. Em um conto que leva o nome de “Filosofia e o Espelho da Natureza”, descreve uma mulher que depois operações plásticas malsucedidas fica com um sorriso constante: a ironista liberal seria uma forma indulgente de aderir ao consumismo e a estrutura de busca da felicidade irresponsável do estilo de vida norte-americano.

Ilustração para a coluna A caminho.
 (imagem: Flavia Ocaranza/Girafa Não Fala)

Mas se nos concentrarmos no que Rorty queria promover com a sua descrição da atividade intelectual, e, muito mais, no que a sua própria trajetória de vida dava testemunho (veja o ensaio autobiográfico “Trotsky e as orquídeas selvagens”), podemos também nos apropriar de modo interessante de sua proposta. Foi o que fez o sociólogo, filósofo e antropólogo Luiz Eduardo Soares, que foi amigo de Rorty e, em alguns aspectos, corrigiu posições do norte-americano. Foi um rico encontro, já que Luiz era já um dos grandes nomes do pensamento brasileiro e possuía autoridade semântica para dialogar, se apropriar e questionar as posições de Rorty. Nos arquivos digitais da correspondência do filósofo norte-americano podemos ler e-mails enviados para Luiz discutindo alguns ensaios do brasileiro e questionando por que na construção de seu “romance da segurança pública” ele dava centralidade à proposta neopragmatista e não às posições de Michel Foucault ou outros teóricos mais afins com a temática. A posição de Luiz se justificaria pelo compromisso democrático do neopragmatismo com a busca de construção de consensos. Esse compromisso não era pouco importante num contexto de (re)construção de instituições democráticas, depois de anos de Ditadura. As teorias críticas – feitas por autores como Michel Foucault, Jacques Lacan, a Escola de Frankfurt etc. – céticas em relação a qualquer normatização, apesar de extremamente interessantes e instigantes, não ajudavam na tarefa necessária de deixar o academicismo e contribuir na construção possível de instituições da democracia liberal. Isso levava à adoção de um hibridismo intelectual crítico-liberal que não desmerece a necessidade de leitura e de conhecimento dos discursos críticos das múltiplas opressões institucionais, mas considera que não se engajar na busca do melhor consenso possível é cair no academicismo mais paralisante e autoindulgente. 

Pior do que isso: se levamos a sério o problema de uma sociedade cindida em duas pelas desigualdades sociais, ficar preso no contexto acadêmico discutindo teses exóticas é uma forma de adesão e de aceitação tácita de uma condição elitista. No contexto brasileiro, que justifica a imagem de cisão entre “dois brasis”, Luiz buscou identificar o conflito central que deveria mobilizar sua atenção: (1) a questão da segurança pública e do comportamento da polícia é aquela que mais afeta as pessoas excluídas dos horizontes de cidadania; (2) não podemos ter efetivamente democracia sem que  o comportamento das polícias seja de reconhecimento e cuidado com a dignidade de todas a pessoas; (3) a negligência com relação à questão da segurança pública por parte dos intelectuais é um sintoma de distanciamento cultural e de classe; e (4) para tentar superar essa cisão em “dois Brasis” esse é um problema incontornável. A abordagem das ciências sociais e todo conhecimento técnico precisava ser complementado por uma ampla redescrição da segurança pública (projeto que deu origem aos romances Elite da Tropa 1 e 2, Cabeça de porco, Espírito Santo e Tudo ou nada),  descrevendo em detalhes a complexidade de seus problemas e promovendo um novo pacto que (re)construa a sociabilidade democrática.

Luiz se filia à melhor tradição pragmatista, comprometendo-se com o trabalho contínuo de não meramente distinguir ou cuidar das diferenças entre cães e lobos (veja na República de Platão, 416a), mas de procurar redescrever o Estado e as abordagens que o percebem como fundado no medo, numa sociedade que pressupõe a confiança mútua. Ao construir seus romances sobre a segurança pública, Luiz rompeu com os pressupostos de Rorty em relação à narrativa literária, que considerava que os extremamente pobres permaneceriam impensáveis, não tendo lugar nas narrativas. Rorty permaneceu afeito ao modelo de narrativa do século XIX e início do século XX, dos clássicos romances de formação. Ao criar e tentar incluir as questões complexas da segurança pública no romance brasileiro, Luiz colaborou com uma grande mudança narrativa e estética sobre como representar o país, o que gerou diversos resultados literários, dramáticos e cinematográficos. Hoje focado na questão da desmilitarização e na tentativa de afastar as sombras da grande noite do fascismo, Luiz mudou nossa forma de imaginar/pensar a segurança pública. Sua atuação não ficou limitada ao âmbito acadêmico ou ao ativismo cívico, por vezes tomando efetivamente a forma política, de quem entra no jogo e busca atuar para modificar e melhorar as instituições (veja, por exemplo, o relato autobiográfico de Meu casaco de general).  O seu romance O experimento de Avelar, lançado em 1997, merece um lugar de destaque no que estou chamando de redescrição e recontextualização da ideia da “ironista liberal”. Nele, uma personagem de esquerda, que lutou contra a Ditadura, procura a obra-prima perdida de um importante teórico marxista. Ele esperava que esse livro tivesse uma função redentora e iluminadora dos horizontes de possibilidade revolucionários e emancipatórios do país. Mas a busca acaba tendo um resultado inesperado, já que a obra sublime que procurava resgatar não existe, ou melhor, o que a personagem encontra é uma instalação de arte pós-moderna. Eis o perigo de buscar/esperar o sublime na política e de fazer de nossa autocriação uma indulgente e alienada tentativa de achar a Verdade que acabaria com qualquer necessidade de diálogo.

*Nota da edição
-  A divisão filosofia continental e filosofia analítica é comum nos debates filosóficos desde o último século até agora. Grosso modo, a filosofia analítica é a filosofia produzida em países anglófonos, muito ligada à lógica, ao estudo da linguagem e à discussão de problemas, com uma ênfase menor na história da filosofia. Já a filosofia continental, trabalhada, por exemplo, na França e na Alemanha, é relacionada mais à fenomenologia, à ontologia, à estudos de história da filosofia etc.

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
Compartilhe